terça-feira, 24 de julho de 2012


Kyra e o Fim do Mundo
Nome do autor:  Vitor Hugo Brandini Ribeiro
e-mail: vitorr@splicenet.com.br

Zé do Caixote, Zelão para os conhecidos, observou o objeto por um longo tempo, coçando a cabeça.
 - Nunca vi isso, não, menino. Parece de pedra, mas é muito leve!
Chiquinho dava risada exibindo os buracos entre os dentes tortos.
- Então, achei lá no fundo do açude que secô. Tava meio que enterrado na lama. Num sei o qui é, ninguém sabe lá em casa, mas achei que o sinhô podia dar uma zoiada e dar umas pilas por isso aí.
Zelão esfregou o queixo barbudo.
- Tá Bão. Posso vendê depois pros turista. Te dô 5 pau, certo, moleque?
- Bom demais, sinhô Zelão. Bom demais.
Zé do Caixote pagou o rapazinho e alisou o objeto inusitado entre suas mãos, um cubo branco que parecia feito de mármore, porém extremamente leve. Colocou um preço e deixo-o na vitrine da vendinha.
Desde 2.060 o pequeno vilarejo fora quase todo coberto pelo aumento das Dunas de Genipabu, que haviam transformado aquela parte do Nordeste Brasileiro em um deserto semelhante ao Saara. Contudo, muita gente ainda vivia ali, tirando seu sustento de turistas eventuais.
As antigas pousadas e hotéis luxuosos, agora decadentes ou fechados, estavam cobertos por toneladas de areia. As poucas casas e a igrejinha emergiam das dunas de forma singular.
Uma mulher esguia, ruiva com olhos verde-jade, sardas e lábios carnudos, surgiu andando devagar pelo caminho de areia que levava as veredas do povoado. Crianças a rodearam tentando vender artesanato ou pedindo esmola, enquanto adultos olhavam-na de janelas, perplexos.
Gentilmente Kyra recusou as ofertas dos garotos e distribuiu moedas à eles, livrando-se rapidamente da pequena turba e adentrando o vilarejo. Vestia uma camiseta branca suja de terra e uma bermuda cáqui, ladeada de estranhas pochetes, chamando a atenção dos transeuntes. De umas das pochetes sacou um celular estranho e brilhante  e ficou de olhos vidrados no que dizia seu visor.
Raimundo mascava um chiclete encostado na porta de um bar, observando a cena. “Aquela turista otária parece que tem um celular bem caro. Nunca vi um tão brilhante! E que gatinha... E tá sozinha...” – Seus pensamentos o fizeram segui-la até a lojinha do Zelão.
Kyra entrou sorrindo, sorriso retribuído por Zé do Caixote, que arrumou os poucos cabelos com as mãos suadas.
- Em que posso ajudar?
A ruiva correu os olhos pela vitrine e logo apontou.
- Quanto quer por este cubo branco?
- Ah, esse é feito de uma pedra que só tem por aqui. Vale cem, mas faço por cinquentinha para a senhora.
Kyra sacou de sua outra pochete algo parecido à um smartphone, leu o que aparecia em sua pequena tela, enfiou a mão de novo na pochete tirando uma nota de cinquenta novíssima.
Zelão aceitou e embrulhou o cubo, entregando-o à ruiva, que pegou-o com muito cuidado. Agradeceu e saiu da lojinha, quando um rapaz chocou-se com ela. Foi tudo muito rápido: em instantes o sujeito, já experiente em correr sobre a areia, saia com uma das pochetes de Kyra e o cubo embrulhado.
- Pare! Pare, homem! Você não sabe o que faz! – A ruiva controlou-se e na pochete que lhe restou tirou um pequeno objeto que cabia na palma de sua mão. Apontou para o homem em fuga e disparou. O fino raio luminoso não atingiu o ladrão, que sumiu dentro de um hotel abandonado.
Raimundo sabia fugir com destreza. Entrara no terceiro andar do velho “Coqueiral”, cujo térreo e os dois primeiros andares sumiram debaixo das dunas. Os corredores agora escuros eram ladeados por portas de suítes há muito vazias. O ladrão chegou às escadas e desceu os lances com muita rapidez, ofegante, mas contente.
Finalmente chegou ao seu lar. Um quarto no primeiro andar, escuro e sombrio. Trancou a porta após acender as velas e foi conferir o que roubara.
Abriu a pochete e tirou o aparelho que Kyra usava ao chegar. Nunca tinha visto um celular  tão brilhante e bonito. Curiosamente não tinha teclas, devia ser um dos novos modelos com o qual só se discava ou se pedia alguma coisa via voz. Alisou-o satisfeito. Depois abriu o embrulho e pegou o pequeno cubo branco nas mãos. Analisou e achou que devia ser só um pedaço de plástico, jogando para o lado. Voltou sua atenção novamente para a pochete. Além do aparelho brilhante, só havia mais um item, por sinal bastante estranho.
- Moça, aquele cara que te roubou era o Mundão, ele é perigoso. – Zé do Caixote ajudava a ruiva a se recompor. Chiquinho apareceu com o coleguinha,  Beto.
- Nossa, moça, que lanterna legal você tem!
- Chico, era uma arma de raios “laise”. – Beto deu risada do amigo.
Kyra guardou discretamente o pequeno dispositivo na pochete que lhe restara e arrumou os cabelos atrás das orelhas.
- Está tudo bem. Garotos, que tal um sorvete? Eu pago. – Os garotos deram vivas e correram pegar picolés na geladeira da lojinha. Kyra virou-se para Zelão.
- Senhor, não se preocupe, sei me cuidar. O que o senhor sabe sobre esse rapaz que me roubou? É muito importante eu recuperar pelo menos o cubo que comprei do senhor.
- Olha, moça, o Mundão, o Raimundo, ele é matador. Já matou turista antes. Olha, o cubo nem vale nada, o Chiquinho ali achou no fundo do açude que secou no mês passado, eu paguei só 5 pilas para ele. É melhor não se meter com alguém da laia do Mundão, dona. Eu até devolvo seu dinheiro.
Kyra sorriu para o sujeito de meia-idade e colocou a mão em seu rosto.
- Obrigada, bom homem. Mas eu sei me cuidar, e além do mais, aquele cubo é muito importante. O senhor não entenderia, porém posso lhe afirmar que o cubo branco é a nossa única salvação do que está por vir.
Zelão arrepiou-se. Do que a gringa estava falando? E ela tinha um sotaque tão estranho... Era alemã? Americana? Francesa? E aquela lanterna, era uma lanterna mesmo ou era uma arma de raios? Arma de raios? Que loucura!
- Dona, o que está por vir? Do que que a senhora tá falando?
Kyra não respondeu de imediato. Apenas fitou o velho hotel no fim da rua de areia, aos pedaços, com as janelas dos quartos quebradas e as paredes cheias de rachaduras, inclinado para a direita, parecendo que ruiria a qualquer momento. Suspirou lentamente.
- Senhor, preciso recuperar o cubo. O senhor lê a Biblia?
- Bom... Bom, de vez em quando eu leio sim... – Zelão era católico, mas não lia a Bíblia.
- Senhor, já leu sobre o Apocalipse? A Revelação? Pois aquele cubo branco servirá para impedir o Juízo Final, impedirá que o mundo termine em fogo! Por isso eu preciso tê-lo de volta!
Zé do Caixote engoliu seco. Quem era aquela maluca?
Kyra encarou Zelão. Esperava provocar o medo nele para que a ajudasse a recuperar o cubo, invocando o mito bíblico do Apocalipse, o que no fundo não deixava de ser verdade: sem o cubo seria o fim do mundo para todos os seres vivos.
- Tá bem, dona. Olha, o Raimundo se esconde no velho hotel “Coqueiral”, aquele mesmo que a senhora viu ele entrar. Ali agora é um antro onde só tem drogado e ladrão. A polícia daqui é só o delegado, o Mané, e o soldado, o Tico, e eles não entram ali nem a pau. Eu também não chego perto, mas se a senhora qué arriscá, vai com cuidado mesmo. A senhora tem uma arma de raio aí, então...
Kyra lhe sorriu mais uma vez, pagou os sorvetes dos meninos e seguiu pela rua de areia até o velho hotel. Caminhou decidida por entre as casas semi-enterradas enquanto tirava sua arma de dentro da pochete novamente.
Raimundo esfregou entre os dedos o pequeno objeto triangular de metal dourado, que tirara da pochete roubada de Kyra, e para seu assombro um raio luminoso surgiu e formou uma figura humana à sua frente. Ele deu um berro largando o objeto, mas ouviu estarrecido o bom senhor de longa cabeleira e barbas brancas que surgiu à sua frente, falando-lhe com voz bondoso e macia.
Kyra entrou no prédio. Pressionando um pequeno botão em sua arma, um jato de luz saiu dela servindo-lhe de lanterna. Andou lentamente explorando o lugar mal cheiroso entre pilhas de entulho. Aprumou os ouvidos mas só ouvia o som de sua própria respiração acelerada.
Se ao menos estivesse com seu sensor portátil, pensou, poderia achar o cubo com facilidade. O aparelho que parecia um celular na verdade indicava sua posição exata. Foi assim que o encontrara ali, naquele vilarejo entre dunas.
Chegou às escadas. Subiria ou desceria? Pensou: se eu fosse uma ladra, onde me esconderia? Embaixo, creio. E desceu devagar. Acertara: ouviu vozes na escuridão. Então avançou iluminando o corredor arruinado.
Observou luzes no rodapé de uma porta. Apagou a lanterna da arma e aproximou-se devagar, a respiração rápida como seu coração.
Chutou a porta e entrou. O golpe que levou foi violento, e derrubou a arma. Caiu atordoada no chão do corredor e o sangue tomava-lhe a face.
- Garota burra. Não devia ter vindo aqui. Eu não queria ter de matar você.
Kyra tirou os cabelos do rosto e limpou o sangue da testa com a palma de sua mão. A cabeça doía. Encostou-se na parede, sentada no corredor. Procurou a arma, mas não a via entre a sujeira e o entulho.
Raimundo estava com um pé-de-cabra em uma mão, que usara para golpeá-la de leve. Podia tê-la matado no primeiro golpe, mas não o fez.
Ele era iluminado por trás por velas tremulantes, o que lhe dava um aspecto fantasmagórico. Mas não se moveu enquanto Kyra subia com as costas raspando na parede até ficar de pé.
- Devolva-me o cubo branco que eu vou embora. Eu lhe dou todo o dinheiro que tenho. Eu só quero o cubo.
Raimundo deu risada. Uma risada banhada de medo.
- Olha, gata, eu ouvi o velho da visão, que saiu da luz do negócio dourado triangular. Se eu te der o cubo, o mundo...
- O mundo vai acabar se não me entregar. Eu arrumo dinheiro, lhe dou o que quiser, mas dê-me o cubo!
Raimundo afastou-se, voltando para dentro do quarto do velho hotel. Segurou firme o pé-de-cabra com as duas mãos, suando frio e com medo, muito medo.
Kyra o encarou e avançou. Chegou perto dele.
- Pare, gata. Pare, eu não quero...
- Não pode me matar. Se me matar o mundo acaba hoje. Se você ouviu o velho, sabe disso. – Seu olhar era firme. Raimundo engolia seco sem parar e tremia segurando com as mãos suadas o pesado pé-de-cabra, tentando mantê-lo em uma posição ameaçadora.
Ele nunca vira uma imagem surgir no ar, mas o homem com jeito de Deus lhe falou como em uma visão, e se ele falou a verdade...
- O velho... O velho na visão. Era Deus? Se era Deus ou não, acontece que ele disse que você...
- Raimundo... Raimundo é o seu nome, não é? O cubo branco é a peça que falta para eu salvar o mundo. O que o velho lhe disse não é de todo verdade. Eu posso e vou salvar a Terra do que está por vir. Mas preciso do cubo!
- Gata, escuta. O velho falou que você quer nos possuir. Eu acho que você é o demônio! O homem na luz falou que você é muito poderosa e veio de outro mundo para nos possuir! Ele falou!
- Mas ele também lhe contou sobre o fim do mundo, não contou?
- Contou. E contou o que é preciso fazer para que o mundo não acabe. Mas ele disse que você é má e quer ter todos nós servindo você e o seu povo estrangeiro.
Kyra tirou a camiseta e com os seios à mostra arrumou os cabelos ruivos.
- Sou sua, meu amor. Basta que me entregue o cubo e eu farei coisas que nunca imaginou fazer com uma mulher.
- Não! Não! O homem da luz me alertou sobre você, mas eu não quero matar você. Dizem que eu matei turistas, mas não é verdade, eu nunca matei ninguém. Fica longe de mim! Eu sempre li muito, estudei sobre planetas e estrelas, eu sei, eu entendi o homem da visão!
- Eu quero o cubo! – Kyra avançou sobre ele com uma rapidez incrível e tomou-lhe o pé-de-cabra demonstrando uma força sobrenatural, derrubando-o e depois tentando golpeá-lo com o instrumento de ferro. Raimundo escapou dos golpes jogando-se entre a sujeira e o entulho, virou o corpo várias vezes até encontrar um monte de areia, que pegou e jogou nos olhos da ruiva.
Escapou para o corredor mas tropeçou em uma viga caída, em meio a escuridão. Kyra surgiu por trás e sorriu de forma sádica.
- Adeus, humano idiota! – E baixou com toda a força o pé-de-cabra sobre a cabeça de Raimundo.
Zelão imaginava o que tinha acontecido à moça bonita. Mundão devia tê-la estuprado e matado, o rapaz não valia um níquel. Conformou-se, afinal a polícia ali não faria nada a respeito, ninguém faria nada. Pobre moça.
Olhou para o céu. Estava estranho. Faixas amarelas e vermelhas aproximavam-se com rapidez tomando-lhe o azul tradicional. Zelão engoliu seco. Seria o fim do mundo como falou a moça?
Baixou os olhos e não pode crer no que via.
Raimundo estava ajoelhado no meio da rua. Suas mãos estendidas seguravam o cubo branco em direção ao céu. Ele gritava palavras estranhas.
Uma luz verde saiu do cubo em direção ao céu. As faixas amarelas e vermelhas sumiram.
Raimundo gritou de alegria. Colocou-se de pé limpando a areia dos joelhos. Dava gargalhadas quando viu Zé do Caixote. Jogou-lhe o pequeno triângulo dourado de metal.
- Zelão, eu achei a arma de raios dela no chão, quando ela ia me matar e a matei antes! – E deu risadas como um louco. – E eu salvei o mundo, Zelão! Eu salvei o mundo!
E saiu gritando pelo vilarejo bradando o cubo branco.
Zelão apertou o triângulo dourado, entre curioso e intrigado. Uma luz saiu dele e a imagem de um homem formou-se em plena rua, para todos verem. O velho repetiu as mesmas palavras que havia dito à Raimundo.
- O Sistema Solar irá cruzar com uma nebulosa em sua órbita pela galáxia e a vida na Terra irá se extinguir. O cubo branco pode gerar um escudo que protegerá todo o planeta durante a passagem pela nebulosa. Mas cuidado com uma civilização alienígena que quer escravizar os homens. Eles salvarão a Terra mas usarão a tecnologia do cubo, deixada pelos Antigos, para dominar todos os humanos. A alienígena que virá à Terra estará na forma de uma bela mulher ruiva. Para ativar os escudos no cubo faça o seguinte...
E foi assim que Raimundo salvou o mundo.