Capítulo 5:
Lembro que nas semanas seguintes eu estudei muito, embora minhas notas estivessem sempre na tangente do vermelho. Só ia bem mesmo em matérias que tinham a ver com programação de computadores.
Solange sempre frequentava os showzinhos do Antunes aos finais de aula e era quando eu via o namorado dela vindo buscá-la, os dois se beijando e ela indo embora abraçada com ele. E meu coração perdia mais um pedaçinho. Porém, até então, sequer podia imaginar o que iria acontecer no futuro. Creio que ninguém, nem mesmo o namorado dela, sabia dos segredos que Solange ocultava.
As férias de julho daquele ano foram frias e sem nada de especial que eu me lembre. Passaram voando. Agosto chegou sucessido por um monótono setembro. Mas em outubro, quando Aloísio, o rapaz que até então eu não conhecia, voltou a morar na nossa república, foi que a minha vida começou a mudar.
Aloísio era feio, cheio de cicatrizes, sua barba estava sempre por fazer e fumava sem parar. Tinha o olho esquerdo meio torto. Cheirava à álcool e era musculoso mas um pouquinho acima do peso.
- Então você é o Flávinho. Ai, cuidem do meu Flavinho... – ele desmunhecou e falou fininho. – Sua mãe falou assim, seu viadinho. Mas escuta aqui, é bom ficar na sua, entendeu... Flavinho?
- Eu tô na minha, cara. Deixa eu em paz.
- Tá. Só ouve o seguinte: se vir qualquer coisa aqui que ache estranha fica na sua e faz que não viu. Eu não ia querer ver sua mãe sofrendo por causa do filhinho, entendeu, ô viadinho?
Eu estava deitado na minha cama e virei-me de costas para ele, cobrindo-me.
- Entendi, sim, pode deixar. Deixa eu em paz e não sou viadinho.
Aloísio saiu da quitinete e quando voltou, estava com Natanael e do quarto ouvia eles rirem alto e conversarem na sala sobre as drogas que iam arrumar e quem dos amigos deles havia morrido baleado. Assustado e tremendo, me cobri mais ainda. E ouvi estarrecido que Aloísio estivera longe todo este tempo porque estivera preso. Que merda de república minha mãe arrumara para mim!
Mas no fim de semana seguinte eu nada comentei com meus pais de medo, puro medo. Meu irmão Fúlvio tinha quebrado meu fone-de-ouvido e fiquei muito irritado.
- Ful, cacete, isso aí me custou duas mesadas. Você vai ter que me dar outro!
- Ah, vai pedir pra mamãe. Eu não tenho nenhum pila, gastei tudo nuns modelos da Revell que vou montar. Foi sem querer.
Pedi o dinheiro para minha mãe. Sua resposta foi mais grossa que curta:
- Nós já pagamos sua república e sua faculdade e ainda te damos uma mesada que dá para você comer e passear. Não temos dinheiro sobrando, não.
- Mas, mãe! Foi o Fúlvio quem quebrou o meu fone-de-ouvido!
- Não tenho dinheiro para isso, Flávinho. Depois quando puder você compra outro. Agora não me atrapalhe que tenho de sair para ver umas amigas.
Naquele domingo eu saí cabisbaixo de casa indo ao fliperama jogar. Não vi os três rapazes, um branquelo e dois mulatos, que me seguiam. Quando entrei por uma rua deserta perto do cemitério, naquela tarde nublada, eles me atacaram e começaram a arrancar tudo o que eu tinha: meu relógio, carteira, meu tênis (que não era caro).
- Aí, moleque, fica na tua e sai correndo senão te arrebentamos! – Disse o branquelo, feio e magro.
Descalso, só de jeans, tentei correr mas um dos rapazes mulatos me passou uma rasteira e eu caí com o queixo na sarjeta. Levantei-me com um talho nos lábios. Passaram a me chutar e só me lembro que desmaiei.
Acordei em um pronto-socorro. Meu corpo todo doía. Meus olhos estavam inchados então olhei com dificuldade para os meus pais, aflitos.
- O que aconteceu, Flávio? – Perguntou meu pai, de mãos no bolso.
- Uns caras me assaltaram perto do cemitério. Depois me espancaram.
- Ai, filho! – Minha mãe estava chorando. – Já te falei para não sair por aí assim, sozinho. Cadê seus amigos?
- Eu ia encontrar com o Rafa no fliperama. Era de tarde, não tinha escurecido ainda, mãe. Não vi os caras chegarem em mim!
Um médico com cara chupada e de olhar indiferente aproximou-se com uma prancheta e disse ao meu pai:
- Ele vai ficar bem. Não quebrou nada. Tem apenas alguns hematomas, mas como desmaiou gostaria que ficasse sob observação aqui esta noite.
- Pai, amanhã tenho Educação Física logo cedo!
- Flávio! Você está bem machucado! Vai ficar aqui esta noite e amanhã não vai para Campinas.
- Mas, pai! Não posso perder a aula de Educação Física! Já tenho muitas faltas!
E não podia mesmo. Eu detestava Educação Física e falta muito. Não podia faltar mais sob risco de ficar com essa matéria como dependência.
O doutor sacudiu a cabeça. Minha mãe segurou minha mão.
- Flávio, você vai dormir aqui e amanhã vai descansar em casa. Terça eu te levo para Campinas e falo com o seu professor de Educação Física.
- Mas, mãe! Deixa que eu me viro na faculdade!
Dormi aquela noite internado no hospital, chorando de madrugada por tudo que estava acontecendo em minha vida, e na terça minha mãe me humilhou ao levar-me na faculdade tratando-me como criança em frente aos meus amigos. Mas salvou-me da reprovação em Educação Física, convencendo meu professor a anular minhas faltas.
Solange era a única que não caçoou de mim sobre as atitudes de minha mãe durante as aulas daquela noite. E quando ela me olhou com um misto de indignação pela atitude dos outros e pena de mim, decidi que estava mais do que na hora de mudar. Mudar de atitude. Mudar de vida.