A Libélula da Asa Negra
Harold
Atkins suspirou olhando o riacho de águas límpidas e geladas. Apesar de ser
verão, não estava muito quente naquele vilarejo da Inglaterra medieval. A Peste
Negra levara sua mulher e sua filha de cinco anos, e Harold suspirava por causa
disso, sem vontade de continuar sua vida. Sentou-se à beira do pequeno riacho
para pescar e tentar esquecê-las por um tempo.
Jogou
o anzol e aguardou, tentando esvaziar sua mente. Era difícil. Agatha aparecia
em suas lembranças, sorrindo, e sua pequena Elise, tão frágil, tão bela, tão
doce... Em seus braços, brincando e gargalhando. E então a Peste as levou.
Porque não o levou também? Porque ele nunca adoeceu? Não sabia.
Nenhum
peixe estava animado para mordiscar sua isca. Mas Harold não estava preocupado,
queria apenas se deixar levar, quando reparou em uma bela libélula.
Mas
essa era esquisita. Harold percebeu que suas asas eram diferentes. Observou-a
aproximar-se até que, estranhamente, pousou no dorso de sua mão direita. Ele
não se mexeu, apenas olhou-a fascinado, pois suas asas, ao invés de serem
transparentes como todas as outras, eram negras, mas não totalmente, veias
vermelhas se espalhavam por elas em formações bizarras.
-
Vou chamar você de Libélula, minha amiguinha. – E riu.
O
inseto pareceu rir de volta e o encarou. Harold espantou-se e sacudiu sua mão,
mas Libélula segurou-se nele e permaneceu encarando-o de forma assustadora. Com
a mão esquerda Harold puxou-a pelo corpo alongado e jogou-a longe.
-
Meu Deus nosso Senhor, que coisa mais estranha, deve ser coisa do demônio! – E
fez o sinal da cruz. Olhou a sua volta e não a viu mais e voltou sua atenção
aos peixes que agora pulavam agitados.
Harold Atkins logo começou a dormitar, pois a
manhã era fresca com aromas silvestres e o barulho da água do riacho o ninava.
Entrou naquela fase onde estamos quase dormindo e começamos a sonhar. Harold
viu Agatha brincando na água com Elise, ambas às gargalhadas, pulando e
cantando, e ele sorriu sozinho de olhos fechados.
Deu
um pulo ao sentir a libélula de volta pousada em seu joelho direito, novamente
o encarando de forma acintosa.
-
Libélula, você voltou! O que quer de mim? Vá embora, demônio!
O
inseto não se mexeu. Harold ficou apavorado, nunca tinha visto uma libélula de
asas negras com filetes vermelhos, e ela insistia em ficar com ele, pousar
nele. No entanto, Harold admirou sua beleza invulgar. Apertou os olhos e
aproximou-se dela para olhar melhor e assombrou-se ao lembrar que aquelas veias
vermelhas correspondiam exatamente aos rabiscos em dólmens que existiam perto
de sua casa no vilarejo. Dólmens que ninguém sabia quem construíra,
presumindo-se que foram os celtas que os levantaram séculos atrás.
Logo em seguida Libélula voou na direção do
vilarejo, mas parou no ar como a esperá-lo. Harold coçou a cabeça e fitou-a por
instantes.
-
O que você quer, amiguinha? Talvez você não seja do demônio, parece ser
boazinha. O que você quer?
Libélula
o circundou algumas vezes e novamente tomou o rumo do vilarejo, parando no ar e
olhando para ele.
-
Está bem, amiguinha. Você quer me levar de volta para casa, é isso? Certo, eu
vou.
Fincou
a vara de pescar na borda do riacho, levantou-se e a seguiu.
A
libélula voou sobre a pequena trilha na floresta inglesa devagar, como a
esperar Harold. Voou até o descampado onde estavam erguidos os dólmens.
Parou
exatamente sobre uma pedra em formato de sepultura com desenhos iguais às de
suas asas. Harold viu aquilo e arrepiou-se.
-
Mas o que é tudo isso? Como pode uma libélula ter as asas pintadas como essa
pedrona aí? Por Deus, o que é tudo isso?
Porém
libélula pairava agitada sobre o dólmen, sem responder. Ziguezagueou por alguns
instantes e depois pousou em uma protuberância no solo.
Harold ajoelhou-se e a observou. Arregalou os
olhos ao ver que Libélula queria lhe dizer algo. Ele ia tocá-la quando ela voou
e sua mão tocou o local onde ela pousara. Um barulho de pedras raspando
assustou o inglês, que deu um salto para trás. O chão se abriu. Degraus se
formaram indo em direção ao subsolo.
De
pernas bambas Harold Atkins aproximou-se e olhou para o túnel escuro. Libélula
entrou pelo buraco e sumiu na escuridão. Apesar de assustado, o inglês foi até
sua casa, que estava próxima, pegou um archote e o acendeu, voltando ao local.
Tornou a olhar para o buraco, tentando
decidir se descia ou não quando Libélula voltou, voou em círculos em torno dele
e entrou novamente no buraco. Engolindo seco, Harold desceu
a escada devagar; o local escuro e cheio de teias de aranha sendo iluminado por
seu archote. Chegou ao final da escada dando em um corredor de paredes de pedra
limosa, um local que cheirava a morte e era assustador. Mas Libélula se agitava
à frente dele e Harold decidiu segui-la, enchendo-se de coragem, pois perdera
tudo na vida e nada mais realmente lhe importava. Dessa forma, deixou sua
curiosidade guiá-lo.
Contudo,
o lugar era tétrico. As teias de aranha no teto e o chão cheio de ratos
faziam-no estremecer, mas seguiu o inseto, parcamente iluminado pelo seu
archote. Aprofundaram-se no subsolo até chegarem a uma câmara em formato
circular com um túmulo no centro.
Libélula
pousou sobre o túmulo, olhando um assustado Harold. Com seu archote ele
aproximou-se e admirou os desenhos esculpidos sobre a tampa de pedra.
-
Definitivamente isso não é celta. Nunca vi nada igual na vida...
Dando
um pulo para trás, Harold Atkins viu Libélula tentando abrir a sepultura.
-
Entendi, danadinha, você quer... Por Deus, você quer que eu abra essa coisa?
Harold
teve a nítida impressão que o inseto sacudiu a cabeça positivamente. Abrir
aquele túmulo? Que coisa mais absurda! Tudo aquilo devia ter um significado.
Aquela libélula não viria até ele à toa. Seria ela uma emissária de Deus?
Decidiu
abrir a sepultura. Encaixou o archote em uma fresta no chão e com as mãos
empurrou a tampa pesada, com muito esforço, até que ela cedeu, e com mais
esforço ainda, ele conseguiu empurrá-la até que caísse no chão, do outro lado,
expondo seu conteúdo.
Harold
Atkins ficou assombrado, e franziu as sobrancelhas. Libélula posou em seu
ombro, como se observasse também o conteúdo da sepultura.
-
Por Deus, que coisa mais intrigante, amiguinha.
Ele
observou mais de perto. Tocou-a. Estava coberta de teias de aranha, mas parecia
dormir serenamente.
-
Quem será? É muito bonita. Extremamente bela.
E apesar de estar totalmente branca, não parece morta, parece apenas
dormir serenamente...
A
libélula posou nos lábios da moça deitada na sepultura. E depois foi até os
lábios de Harold.
-
Ei, pare, pare! O que é isso, amiguinha?
Mas
a libélula repetiu o gesto. E mais uma vez. E outra.
-
Espera, Libélula, deixe-me ver se entendi, você quer que eu a beije!?
Harold
Atkins tinha vista muita coisa na vida, mas caiu de costas no chão de pedras
sujas ao ver a cabeça do inseto mover-se positivamente.
Ele
se recompôs e suspirou. Que coisa mais sem nexo. Porém, o que tinha a perder?
Deu de ombros e beijou os lábios da mulher. Que abriu os olhos e o abraçou,
puxando-o para dentro da sepultura e o beijo tornou-se sensual, com a língua da
garota explorando a boca de Harold de forma a deixá-lo inebriado.
Quando
ele se safou de seu abraço, caiu sentado junto ao túmulo. A garota livrou-se
das teias de aranha e sentou-se. Seu rosto ficou corado, enquanto seus olhos
cor de esmeralda estavam cheios de vida. Seus longos cabelos que eram brancos
ficaram louros da cor do trigo.
-
Finalmente fui libertada do feitiço! Depois de centenas de anos dormindo aqui,
estou livre! – E viu a libélula sobrevoá-la, contente. – E você, meu amigo,
está livre também! – E fez um gesto com as mãos.
A
libélula se transformou em um homem gorducho e bonachão.
-
Obrigado, Felicity. Não aguentava mais ficar zanzando por aí como um inseto.
Harold
ficou de pé, mas estava atordoado. Assustado. Espantado.
-
Quem ou o quê é você!?
-
Eu sou a Felicity – ela deixou a sepultura e limpou-se do pó e teias de aranha
que ficaram sobre a seda de suas roupas, que se revitalizaram junto com ela – eu
sou uma fada. Um mago do mal me enfeitiçou e ao meu assistente aqui, Romanello.
-
Romanello, e não Libélula, e não sou sua “amiguinha”, senhor! Aliás, qual é o
seu nome?
-
Eu sou Harold Atkins!
Felicity
colocou as mãos sobre os ombros de Harold.
-
Eu sei quem você é e a sua história. Eu li sua mente quando me beijou e me
despertou. Como boa fada, eu vou realizar seu maior desejo.
-
Não tenho nenhum, não há riqueza neste mundo que possa me alegrar. Se leu minha
mente sabe que perdi minha esposa e minha filha, que eram a minha razão de
viver; não existe nada que eu...
-
Papai, papai! – Era a voz de Elise.
–
Harold, onde você está? – A voz de Agatha.
Vinham
de lá de fora, além do corredor e da escada.
Harold
Atkins ficou todo arrepiado. Sua respiração se acelerou. Sem archote mesmo, correu
no escuro para o encontro delas.
Felicity
sorriu gostosamente. Ouviu Romanello dizendo:
-
Ah, minha fada maravilhosa, sabe mesmo realizar qualquer desejo!