A Irmandade do Espaço-Tempo
Por Vitor
Hugo Brandini Ribeiro
Iniciado em 28/04/2015
Capítulo
01
Rafael Kyllard admirou as estrelas
apinhando o céu, na noite quente e úmida, da sacada do Hotel Belas Artes em São
Paulo. Tinha acabado de chegar de sua última missão em Karez e estava
apreensivo com o conteúdo da reunião secreta da Irmandade, que aconteceria
dentro de instantes.
A Irmandade do Espaço-Tempo era uma
entidade particular sem fins lucrativos que funcionava nos bastidores da
UniCiv, a União das Civilizações, durante aquele período conturbado depois de
200 anos de paz e crescimento.
Havia guerras em determinadas partes
da galáxia da Via-Láctea, e a UniCiv já alcançava um terço dela, em uma
expansão considerável. Porém suas fronteiras estavam ameaçadas por raças
beligerantes e mesmo internamente, governos aliados estavam quase iniciando uma
guerra civil. Com exceção da região da Terra e adjacências, havia muita
instabilidade depois de anos de tranquilidade e prosperidade.
Rafael nascera em Galileus, planeta
que já fora colônia da Terra e onde a inteligência artificial de última geração
havia sido criada. Descendia de italianos e seus olhos eram castanhos e belos. Tinha
cabelos negros levemente encaracolados, um metro e noventa de altura e
constituição forte. Sentia saudade de sua cidade natal, Nova Roma, já que fazia
certo tempo que não retornava, devido às missões constantes que a Irmandade lhe
dava.
Seu computador avisou-o que estava
na hora de ir à reunião. Por um instante fugaz pensou como teria sido difícil a
vida no passado sem a tecnologia moderna, como aquele computador implantado em
seu cérebro.
A sala de conferências alugada do
hotel pela Irmandade estava quase vazia. Apenas o Mentor estava sentado na
ponta da grande mesa de carvalho e a bela Lindsey de pé anotando algo em um pad.
Lindsey Tranley. A lindísisma
tevariana de orelhas pontudas, olhos azuis e cabelos dourados usava uma
mini-saia para lá de provocante. Rafael sorriu. Suspirou, mas conteve-se. Sabia
que mais tarde teriam uma noite agitada de muito sexo na suíte em que estava
hospedado. Sempre que voltava a Terra, ele e ela se entregavam furiosamente,
como se mais nada existisse.
- Sente-se, irmão-comandante
Kyllard. Parabéns pelo sucesso na missão em Karez.
- Obrigado, Mentor – o homem-máquina
era alto, cabelos e barbas brancas espessas e olhos de um verde profundo. Pele
negra como ébano e corpo muito grande, resultado da engenharia genética. Em seu
cérebro havia apenas restos de engramas da memória de Rodrigo Maulson, criador
da Irmandade há 120 anos. Agora mais androide do que humano, com uma sabedoria
imensa, comandava a Irmandade.
- Eu o chamei aqui por causa de uma
nova descoberta da Espiral. Ao que parece, existe um planeta na Constelação de
Tucana, mais precisamente no aglomerado estelar de 47 Tucanae, na estrela Tucana Beta, de formação curiosa.
- Parece uma região sem grandes
atrativos. Se não estou enganado, fica a 14.000 anos-luz da Terra e
recentemente foi agregada à UniCiv. O senhor disse, “formação curiosa”?
- Exato. A nave de pesquisa Hawking da Espiral esteve mapeando a
região e encontrou esse planeta, um gigante gasoso imenso.
- Muito comum no Universo, senhor.
- Ah, mas com um detalhe. Seu núcleo
é rochoso, e além das camadas gasosas normais de um planeta deste tipo, existe
uma atmosfera estável de oxigênio e nitrogênio. E a gravidade é manipulada.
Exatamente 1 g.
Rafael observou o Mentor incrédulo.
Levou segundos para assimilar a informação.
- Eu ouvi direito?
Lindsey finalmente interrompeu a
conversa e sentou-se ao lado do irmão- comandante com um sorriso. Mostrou-lhe
seu pad.
-
Olhe, querido. A Hawking obteve esses
dados misteriosos no ano passado. Tudo indica uma civilização extremamente
avançada, mas por algum motivo a Espiral
se afastou de lá e mantêm segredo sobre a descoberta. Até a Força Azul não
se aproxima, e apenas patrulha a região.
- Que estranho – Rafael tomou o pad em suas mãos e tocou a superfície
para visualizar os dados que desejava. – Bom, o senhor quer que eu vá até lá,
Mentor?
- Exato – O mentor gesticulou no ar
e imagens tridimensionais de alta definição apareceram sobre o tampo da mesa. –
Observe como a região foi isolada, na surdina, por naves de patrulha da Força
Azul. Tudo isso é cercado de muito mistério. Quero que leve sua tripulação para
investigar este planeta, que a Espiral chama de Junia.
- Junia? Parece um nome bíblico
daquela antiga religião...
Lindsey deu uma risada curta.
- Na verdade é o nome da filha do
capitão da Hawking. A Espiral está
ficando sem inspiração para nome de novos planetas.
Rafael Kyllard admirou a imagem
tridimensional do planeta Junia. Era bonito, com pequenos anéis e muitas luas,
como a maioria dos gigantes gasosos. As tempestades da atmosfera estavam lá, e
era multicolorido, como Júpiter no próprio Sistema Solar. Intrigante. A
Espiral, o braço científico da UniCiv, era conhecida por sua discrição. Se haviam
descoberto algo inusitado, iriam pesquisar muito antes de divulgar informações
sobre o planeta.
Contudo, Rafael notou que não havia
nave alguma da Espiral na representação gráfica tridimensional acima do tampo
da mesa. Apenas naves da Força Azul, o braço militar da UniCiv.
- Por que os cientistas da Espiral
não estão pesquisando o planeta, se foi descoberto no ano passado?
- Aí que está – o Mentor colocou-se
de pé e aproximou-se do comandante, colocando a mão em seu ombro. – Não
sabemos. Quero que entre camuflado no aglomerado e vá até Junia. Tente levantar
o máximo de informações sobre o planeta. Descer à superfície solidificada em
seu interior é quase impossível por causa da atmosfera gasosa externa, mas
entre em órbita e obtenha o máximo de informação que puder.
Rafael colocou-se de pé e deu um
curto abraço no Mentor, como era de praxe.
- Entendido. Partirei assim que a Ísis estiver reparada, abastecida e
pronta. Acredito que poderemos partir em dois dias. Usaremos a demodulagem para nos camuflarmos como da
última vez em que enfrentamos os devonianos em Ártica.
- Está funcionando corretamente?
- Sim, embora sempre iremos correr o
risco de sairmos de fase do universo definitivamente e nos perdermos entre os
multiversos.
Lindsay revirou os olhos.
- Comandante, sempre me fazendo
tremer. Eu vou nessa expedição, sabia? Não precisa me assustar mais do que
estou.
Rafael encarou o Mentor e apontou a
tevariana com o polegar.
- Ela vai nessa missão?
- Sim. A irmã Lindsey Tranley é
especialista em novas culturas e primeiros contatos, o que pode ser importante
nesta expedição. Ela trabalhou anos na Espiral, não sabia disso,
irmão-comandante Kyllard? – diante da negativa do galeliano, o Mentor deu um
sorriso discreto. – Pois deveria, afinal a leva para a cama todas as vezes que
volta à Terra.
***
A Ísis era uma nave civil moderna e bem equipada. De porte médio, com
dez decks e tripulação de cinquenta pessoas entre operadores, seguranças e
cientistas, tinha perfil aerodinâmico e bons motores interversais. O
irmão-comandante Rafael Kyllard, além de chefiar o setor de expedições da
Irmandade, também era o capitão da nave. Além disso, servia como braço direito do
Mentor, sendo seu homem de confiança no espaço profundo.
Lindsay, sempre toda sorridente e
faceira, entrou na Ísis pelo tubo de
ligação entre a bela nave e o estaleiro orbital Lunar 5. Sempre se admirava com
o conforto e a decoração luxuosa da mais importante das três astronaves da Irmandade,
e foi direto à ponte de comando, reencontrar Rafael, depois de uma noitada
tórrida com ele no hotel em São Paulo.
O comandante falava com o imediato
Lucas Silvar, o fechado e turrão terráqueo que sempre estava ao lado de Kyllard
e morreria por ele, se necessário. Nascido no distrito do Brasil, mulato de
olhos negros, parecia estar sempre de mau humor e algumas pessoas afirmavam que
ele nunca sorriu na vida, o que não era verdade.
Lindsay
Tranley entrou de supetão.
- Oi, meu amor. Quando partimos e
onde vou ficar, na sua cabine?
Rafael ficou surpreso. Não que não
gostasse de Lindsay, mas estava atraído apenas pelo corpo dela, e apesar de ser
uma socióloga respeitada e ter cargo importante na Irmandade, dava impressão
que era uma desmiolada. Era o jeito dela. Quando precisava, se concentrava e
ficava séria, mas na maior parte das vezes, era meio... “maluquinha”, nas
palavras do Mentor.
- Tem uma cabine designada para
você, srta. Tranley, no deck 4, o dos cientistas, e, por favor, dentro desta
nave exijo respeito e comportamento adequado.
Aqui dentro e em missão você deve me tratar como irmão-comandante
Kyllard ou simplesmente como capitão.
Ela bateu continência, como os
antigos militares faziam.
- Sim senhor, senhor capitão! –
virou-se e saiu pisando duro em direção ao turbo-elevador.
Irritada,
a tevariana roeu as unhas enquanto descia até o deck dos cientistas. Disse em
voz alta, ralhando os dentes.
-
Eu o odeio, Rafael Kyllard!
***
Luciana Katnik recebeu a informação
que precisava em seu computador. Como a maioria dos cidadãos da UniCiv, tinha
chips integrados ao seu cérebro como computador pessoal, e em sua retina apareceram os dados
que ela desejava. Seguiu o corredor de decoração espartana até o portão do tubo
que ligava Lunar 5 à Ísis.
Identificou-se
com o robô-porteiro e aguardou, admirando pelas amplas janelas a Lua embaixo do
estaleiro. Quando lhe foi permitida a entrada, suspirou. Estava nervosa em
partir para o que os terráqueos chamavam de espaço profundo. Nunca saíra do
Sistema Solar em todos os seus 32 anos de vida.
Achou a Ísis muito ampla, iluminada e bem decorada. Porém, isso não
diminuiu suas preocupações e torcia as mãos. Seu computador indicou a direção
da ponte de comando e para lá se dirigiu.
Esguia, longos cabelos ruivos e
olhos verdes - de uma beleza invulgar -, tinha um Q.I. elevado e uma voz doce e
aveludada. O Mentor a contratara para a expedição à Junia porque tinha poderes
psíquicos como clarividência, percepção extrassensorial e uma fraca telepatia –
apesar de os telepatas terem sido banidos da UniCiv há muito tempo. Nascera em
Gammarod, mas tinha descendência humana.
- Bem-vinda a Ísis, senhora Katnik. O Mentor já transmitiu todos os seus dados ao
meu computador pessoal. Agradeço muito que tenha aceitado o convite da
Irmandade.
Luciana achou o capitão muito
atraente. Estremeceu sob seu olhar e engasgou-se:
- O-Obrigada. Eu confesso que estou
um tanto receosa. Nunca viajei tão longe.
- Não se preocupe. Será apenas uma
expedição de exploração da Irmandade. A nave é bastante segura e terá todo o
conforto que pudermos oferecer. Seu marido, o coronel Pillar, foi enfático quando
falou que deveríamos cuidar muito bem da senhora.
Luciana fechou a cara. Seu casamento
estava abalado, e a prepotência de Amon Pillar estava ficando insuportável.
Estava feliz de poder ficar longe dele durante aqueles dias da missão à Junia.
- Lucas, acompanhe a senhora Katnik
até sua cabine – Rafael não tirou os olhos de Luciana, achando-a extremamente sensual.
– Sua bagagem já está lá e a sua disposição, senhora.
- Muito obrigada por sua
hospitalidade, capitão.
***
A Ísis partiu no horário previsto, dois dias após a reunião com o
Mentor e a tripulação já trabalhava com vontade enquanto a nave se afastava da
órbita da Lua.
Na ponte de comando, bastante convencional,
Rafael observava seus monitores e ordenou que fosse traçada a rota para a
constelação de Tucana. Naquela época, 14.000 anos-luz com uma astronave rápida
como a Ísis seria uma viagem de dez
dias.
Além de usar os conhecidos e comuns wormholes, buracos no espaço que
atravessavam a galáxia, as naves avançadas da UniCiv no ano 3.000 usavam
propulsão de fase, obtendo uma colossal energia da fusão de átomos de
multiversos diferentes. A Relatividade de Einstein era driblada com a chamada
compressão temporal, onde o tempo era transformado em pacotes-crono.
O conhecido torvelinho do wormhole surgiu à frente da Ísis e a nave mergulhou no anti-espaço,
em direção ao planeta Junia.
O engenheiro denebiano Alfen Ak-Tab
cuidava dos motores da Ísis. Como
todo ser nascido em Deneb, tinha pele verde, olhos vermelhos e antenas. Quando
a nave já se encontrava em velocidade de cruzeiro, horas depois de terem
deixado o Sistema Solar, o capitão Kyllard foi vê-lo.
- Como estão as coisas por aqui, meu
velho?
- Motores funcionando normalmente,
consumo de sal dentro dos parâmetros, meus cinco auxiliares são uns
incompetentes e espero que o senhor não enfie a Ísis de novo perto de um buraco negro. Se eu morrer nessa viagem pedirei
demissão!
- Entendido – Rafael segurou a
risada. – Até que ponto você acha que a nave aguentaria mergulhando na
atmosfera de um planeta gigante gasoso?
- Tá maluco? Onde o senhor vai enfiar a Ísis desta vez?
- Eu agradeceria se fosse um pouco
mais objetivo, meu velho. Estamos indo a um planeta misterioso que tem uma
atmosfera normal sob uma outra,
típica de gigantes gasosos.
O denebiano agitou as antenas.
- Nunca vi nada assim, tem certeza
que isso é possível? Só pode ser algo artificial.
- Acredito que sim. Uma civilização
bem avançada deve estar escondida lá e iremos investigar. Então, você acha que
a Ísis aguentaria atravessar as
camadas de gás ionizado e tempestades até alcançar a superfície do planeta?
- Claro que depende da espessura
dessas camadas, mas eu posso reforçar os escudos transcinéticos. Verei o que
posso fazer, capitão.
- Sei que fará o melhor, meu velho.
***
Luciana Katnik entrou na luxuosa
sala de jantar do capitão da Ísis um tanto
nervosa. Rafael a convidara para jantar com ele e com outros oficiais da nave.
Observou já à mesa, além de Kyllard,
um thoriano que não conhecia, o imediato Lucas Silvar e - para seu alívio -, a
doutora Prester Lings.
Lings era a médica-chefe da Ísis e velha amiga de Luciana. Japonesa
de Marte, tinha senso de humor aguçado e podia diagnosticar uma doença só
olhando para o paciente. Era empática. Fora muito perseguida pela Espiral por
causa disso e se refugiara na Irmandade.
- Ah, Prester! Que bom revê-la! Não
tinha ideia que estaria aqui nessa nave.
Colocando-se de pé, a japonesa
abraçou a amiga. Rafael colocou-se de pé também e fez uma mesura para Luciana.
Apontou os outros convidados.
- O senhor Lucas Silvar a senhora já
conhece, é meu braço direito e cuida da segurança da nave, além de ser imediato.
E aqui temos o cientista-chefe da Ísis, Tariv.
Por favor, sente-se, senhora Katnik, pedirei para o jantar ser servido.
Conversaram amenidades enquanto degustavam
a farta refeição. Rafael não tirava os olhos de Luciana. Até Tariv percebeu e
sussurrou para Lings.
- Creio que nosso capitão irá fazer
mais uma vítima.
A médica segurou o sorriso e
sussurrou de volta:
- A Lu é casada, mas não duvido nada
que o capitão irá galanteá-la. E pare de ser fofoqueiro, Tariv, não pega bem
para um thoriano.
Tariv e seu cabelo negro, que
parecia ter sido cortado com uma tigela na cabeça, olhos escuros como breu,
pele muito alva e orelhas pontudas iguais aos da Lindsey, não se portava como
um thoriano comum. Apesar de ser um tanto pragmático, como qualquer um nascido
em Thor, não continha as emoções e falava demais. Porém era um excelente
cientista, expulso da Espiral por ser muito... “Fofoqueiro”.
Luciana se divertia, e sua leve
capacidade telepática a fez perceber as intenções de Rafael. Corou e abaixou a
cabeça. Sorriu. O achava extremamente atraente e sensual. Mas era casada, pensou,
e tinha que se comportar.
A voz do computador da nave soou nos
alto-falantes.
- Capitão, sua atenção é exigida na ponte. Recebemos comunicado da Força
Azul direto de Zeta Herculis.
-
A sobremesa estava ótima, mas o dever me chama. Lucas, venha comigo, os outros,
por favor, fiquem e conversem mas um pouco, entretenham nossa convidada.
Subindo à ponte de comando com seu
imediato, o capitão logo pediu que a mensagem fosse repassada.
No meio da ponte a imagem sólida do
almirante Rogério D’Ambrosio surgiu. Um humano calvo, olhos minúsculos
castanhos, de muita idade e olhar sagaz.
- Irmão-comandante Kyllard fazendo
mais uma das suas. Recebi informação do Alto Comando da Força Azul que se
dirige para o sistema estelar de Tucana Beta. O que vai fazer em um sistema
desabitado?
- Pesquisas, que eu saiba Tucana
Beta agora faz parte da UniCiv.
- Sim, mas está fechado para
visitações. Não tem permissão para entrar lá.
- Bem, iremos então para Tucana
Alfa.
O olhar de D’Ambrosio estreitou-se.
- O que vai fazer em uma estrela
gigante azul sem planetas? Não vai enganar a Força Azul desta vez,
Kyllard. Se chegar perto do aglomerado 47 Tucanae vai ter uma frota de fragatas
esperando por você, com canhões quânticos pronto para transformar sua nave em
átomos.
- Entendido almirante. Iremos nos
comportar.
- É bom mesmo, Kyllard. Estou por
aqui com você – e fez um sinal com a mão sobre a cabeça. - Fim da transmissão.
Rafael Kyllard ficou furioso.
- Quero saber quem passou nossa rota
para o Controle de Tráfego Interestelar.
Danii Trescott levantou-se da
poltrona do piloto. Alta, cabelos azuis que chegavam até sua cintura, olhos
violetas assustadores e pele queimada de sol, era uma das amazonas de Séprika,
o planeta dominado pelo gênero feminino.
- Eu, capitão, pois sem uma contra-ordem
informei nosso destino para o C.T.I., como de praxe.
- Nunca gostei do seu tom
desafiador, Danii. Se não fosse a melhor piloto de naves estelares que já
conheci, metia um pé na sua bunda.
O pessoal na ponte conteve a risada.
Menos Lucas, com a cara sempre fechada.
- O que quer que eu faça agora...
Capitãozinho?
Ela chegou perto de Kyllard. Com
seus dois metros e dez de altura, gostava de olhar o capitão de cima.
- Informe o Controle de Tráfego que
mudaremos nossa rota para Tucana Alfa e é para lá que iremos. E veja se me
respeita!
- Ou vai me dar um pé na bunda?
Rafael deu um sorrisinho.
- Não. Vou fazer você ir limpar as
latrinas. Eu mesmo posso pilotar essa nave. Aliás, é uma boa ideia. Lucas,
escale a senhorita Danii Trescott para limpeza das latrinas de todas as cabines
do deck 5, desativando os robôs-faxineiros.
Danii ralhou os dentes, mas ficou
quieta, vendo Kyllard sair da ponte. Sabia que o Mentor a tinha em alta conta
por ser uma piloto fantástica, mas sabia também que se desafiasse Rafael Kyllard,
o Mentor a despediria. E Danii não queria isso. A Irmandade era tudo para ela.
***
A Ísis chegou a Tucana Alfa depois de nove dias e algumas horas. A
estrela gigante azul nada tinha de
especial, mas estar próximo a ela daria cobertura para a nave da Irmandade
entrar no sistema adjacente, Tucana Beta, e chegar até Junia.
Rafael Kyllard estava em sua
poltrona de comando, na ponte.
- Preparar a demodulagem para nos
camuflarmos – tocou um botão em seu console. – Alfen, acione os escudos
transcinéticos para demodulagem. Prepare
para sairmos de fase. Desligue os motores interversais.
-
Entendido, capitão.
A Ísis desapareceu visualmente, estando fora de fase com o universo
normal. Seguiram pelo anti-espaço passando por um wormhole até dentro do sistema estelar de Tucana Beta, que
pertencia a uma estrela amarela comum, Tucana Beta-A, e a uma anã-vermelha,
Tucana Beta-B. Instantes depois estavam em órbita de Junia.
- Órbita padrão implantada, capitão
– Danii Trescott ainda se ressentia de ter tido que limpar latrinas, dias
atrás.
- Ótimo. Agora vamos iniciar nossos trabalhos.
Tariv, lance satélites de pesquisa e sondas ao planeta. Quero tudo varrido
minuciosamente. Chamem a Katnik para...
A Ísis sacudiu violentamente.
- Informações! – berrou Rafael.
Lucas Silvar olhou estarrecido para
seus monitores.
- Capitão, estamos sendo atacados
por naves devonianas!
- Como isso é possível? Estamos no
espaço da UniCiv e muito longe das fronteiras da União Devoniana!
- Eu não sei, capitão. Estão por
todos os lados, são muitos, não podemos com tantos cruzadores pesados.
Rafael ficou de pé olhando para as
naves que apareciam na imensa janela-vídeo frontal. Atiravam diretamente na Ísis, e só o fato de terem modernos
escudos de proteção transcinéticos impedia a nave de virar lixo espacial.
Lillian Azek, a dary no painel de
operações, informou, tremendo:
- Escudos caíram para cinquenta por
cento. Não resistiremos por muito tempo em órbita, capitão.
- E não podemos sair de órbita, as
naves devonianas nos cercaram – Danii Trescott mantinha a calma, como era comum
para ela em situações de perigo.
Kyllard sentou-se e segurou fortemente
nos braços de sua poltrona. Ele tinha que tomar uma decisão rápida ou seriam
destruídos.
- Danii, mergulhe a nave no planeta,
agora!
Lucas virou-se para Rafael.
- Isso é loucura, capitão, vai nos
matar.
- Se ficarmos aqui estaremos mortos
de qualquer jeito. Danii, execute!
A piloto não vacilou e mergulhou a Ísis na direção de Junia.
Capítulo 02
Os devonianos eram seres medonhos
para os humanos e outras raças humanoides. Se pareciam com aranhas gigantes, com altura
de dois metros e cumprimento de três, em média. Possuíam quatro “pernas” e duas
“mãos”, corpo peludo, de pelos negros, castanhos ou avermelhados, e suas cabeças
se assemelhavam a de seres humanos, e não a de aranhas, pois tinham apenas dois
olhos, duas orelhas, nariz e boca.
No entanto, antenas parecidas com
chifres nasciam em suas cabeças oblongas e de suas bocas se projetavam presas,
que usavam para devorar carne, de preferência fresca.
Essa era uma das razões de serem tão
temidos. No primeiro contato entre a UniCiv e Devônia, os exploradores foram
devorados vivos. Além disso, os devonianos eram impiedosos e beligerantes ao
extremo. A guerra era tudo para eles. A luta, a morte e a conquista era o que
cada devoniano almejava em sua longa vida.
Devorar seus inimigos tratava-se de um ritual tradicional.
Na civilização das “aranhas do
demônio”, apelido dado a eles pelos humanos, o desenvolvimento tecnológico se
deu unicamente em razão das guerras. Embora se intitulassem União Devoniana, na
verdade eram um império, e o Kjank, seu imperador supremo. O Kjank (pronuncia-se quijânque) conquistava seu
poder através de feitos em batalha. Quanto mais batalhas vencia, mais honra um
devoniano conquistava, até chegar ao poder supremo. Contudo, eram extremamente
leais entre si e não havia disputas internas. Esta “união” era o motivo de seu
império ser tão extenso e eles serem quase imbatíveis em confrontos diretos.
As patentes e as posições políticas
abaixo do Kjank eram similares às da UniCiv, portanto neste livro daremos o nome
uniciviano à elas, além de traduzir quase todas as palavras devonianas para o
solanês, a língua oficial da UniCiv.
O capitão-de-frota Lukor-At, da nave
capitânia Astrugh, observou a Ísis mergulhar em direção ao planeta que
os unicivianos chamavam de Junia, sem espanto. Era o que teria feito se fosse o comandante
daquela astronave.
Não iria persegui-la. Sabia que as
chances deles sobreviverem na atmosfera densa do gigante gasoso eram mínimas. No
entanto, o fato de seus cientistas dizerem que havia uma atmosfera comum e
gravidade de 1g abaixo daqueles gases em turbilhão do planeta o intrigava.
Continuariam a explorá-lo, a despeito das investidas da Força Azul.
O Kjank em pessoa tinha ordenado à
pequena frota de combate devoniana que explorasse aquele curioso sistema
estelar, invadindo o espaço da União das Civilizações. A UniCiv e a UniDev estavam
em guerra não-declarada desde os primeiros contatos.
Mas Lukor-At não estava preocupado
com os humanos e seus aliados. Claro que ansiava batalhar com eles e galgar o
posto de contra-almirante, porém naquele momento sua preocupação era estudar o
planeta abaixo deles.
- Já obteve alguma informação sobre
Junia, Kark-Li?
- Negativo, capitão, senhor, capitão.
A primeira atmosfera é muito densa. Aquela nave da UniCiv deve ter se
desintegrado ao mergulhar nela. Lançarei algumas sondas, ó capitão, senhor.
Kark-li era imediato, cientista e
amigo de Lukor-At. O líder devoniano então voltou-se para o tenente Priscol-Pá,
responsável pelos sensores.
- Alguma atividade da Força Azul?
- Nenhuma, capitão-de-frota Lukor-At.
Curiosamente estão mantendo distância. Não entendo o motivo, senhor, ó, senhor.
- Devem estar tramando alguma coisa.
E em relação à nave que mergulhou em Junia, algum sinal dela?
Priscol-Pá digitou alguma coisa em
seu console.
- Nada, senhor capitão-de-frota. Eles
sumiram entre as nuvens da tempestade eterna da alta atmosfera, meu senhor.
- Veja se identifica destroços. O
Kjank iria ficar furioso se unicivianos chegassem ilesos à superfície de Junia.
- Entendido, ó capitão, meu senhor.
Farei uma varredura de campo de alta intensidade.
***
As tempestades eternas na alta
atmosfera de Junia faziam os gases aquecidos ficarem sempre rodopiando,
provocando grande turbulência, além da pressão descomunal e a radiação severa.
Mesmo com escudos transcinéticos, a Ísis era
jogada de um lado a outro e pedaços do casco começaram a se desprender. O calor
interno da nave não era mais dissipado com eficiência, e explosões se seguiram
em vários painéis e consoles.
Os amortecedores inerciais falharam
e muitos tripulantes foram jogados contra as paredes ou o teto. Incêndios
irromperam em várias seções, e Alfen, na Sala de Máquinas, lutava para manter
os motores e outros sistemas da nave em funcionamento.
Na ponte, os cintos de segurança
automáticos prenderam os tripulantes em suas poltronas, porém a luz normal caiu
e tudo foi tingido de vermelho com as luzes de emergência. O capitão berrou por
sobre o ruído dos alarmes:
- Informações!
Tariv permanecia calmo e concentrado.
Não tirava os olhos dos sensores.
- Estamos sem controle navegacional,
motores e sistemas falhando, escudos caíram a dez por cento e tivemos
rompimento do casco em várias seções. Já as vedei. Incêndios começaram nos
decks cinco e seis.
Acionando um botão em seu console,
Rafael berrou:
- Controle de Danos, verifiquem
incêndios nos decks cinco e seis – olhou para seu imediato. - Lucas, aumente a energia
de coesão das paredes externas.
Kyllard limpou o suor da testa. A
turbulência e os ruídos eram terríveis, e a nave chacoalhava de forma intensa.
Lillian Azek gritou:
- Perdemos todo o setor B do deck três.
O computador principal caiu. Controles navegacionais em colapso.
Nos alto-falantes, a voz de Alfen
foi severa:
- Motores pararam. Os reatores estão falhando, capitão.
-
Alfen, ligue os motores auxiliares. Lillian, vede o setor B do Deck três, mande
todo o pessoal que não esteja a trabalho para a enfermaria, o lugar mais
protegido da Ísis. Lucas, direcione
toda a energia restante dos reatores que ainda funcionam para os escudos
transcinéticos.
Danii Trescott tentava pilotar a
nave, que era como um palito de fósforo no meio da correnteza de um rio
revolto. Mas os manobradores falharam.
- Sem navegação – a seprikana
estremeceu. – Não tenho mais controle da nave, capitão. Estamos caindo e vamos
nos desintegrar. Não posso fazer mais nada.
Um forte baque fez a Ísis ficar às escuras. Até as luzes de
emergência se apagaram. Totalmente descontrolada e com muitas avarias, a nave
da Irmandade saiu do meio das camadas de nuvens coloridas e despencou pela
atmosfera comum – semelhante a da Terra -, até se chocar contra o solo, dentro
de uma floresta tropical.
Pela enorme velocidade com que
pousou, a Ísis deslizou por muitos
metros arrancando árvores e deixando um grande rastro de destroços atrás de si.
Só foi parar, partida ao meio, no sopé de um morro. O incêndio que se seguiu
foi eliminado pelos robôs-bombeiros.
Alguns mortos, muitos feridos. A
maioria da tripulação desmaiou durante a aterrissagem, menos o pessoal da ponte
e os que estavam na enfermaria.
- Informações! – Rafael Kyllard
estava totalmente atordoado.
- Danos por toda a nave, capitão – Lucas
falou com a voz rouca. – Temos muitas baixas. Escudos no zero, atmosfera
comprometida, casco bem avariado e corrompido. – Digitou alguma coisa no seu
console, que tinha voltado a funcionar. – A Ísis
se partiu ao meio, senhor. Está condenada.
- Merda. Merdaaa!! – Rafael deixou
sua poltrona. As luzes normais voltaram a funcionar, assim como a maioria dos
painéis, monitores e consoles. No entanto, a ponte estava coberta de fumaça e
alguns instrumentos pegaram fogo, logo debelado por Tariv e Danii Trescott.
Rafael tocou em uma tecla em seu
painel.
- Como estão as coisas aí, Alfen?
- Um desastre, capitão. Perdi dois bons homens. Reatores com problemas,
motores inúteis por enquanto. Logo terei mais detalhes.
-
Aguardarei,
meu velho – Rafael apertou outra tecla. – Lings, informações!
- Estou recebendo feridos agora, capitão. Contabilizei cinco mortos mais
os dois da Sala de Máquinas.
-
A
senhora Katnik está aí com você?
- Sim, ela está bem. Assustada, mas bem. Ela me disse que previa que algo
assim poderia acontecer.
Kyllard
detestava coisas como premonição, telepatia e clarividência. Não acreditava
nesse tipo de coisa. Fechou a cara.
- Mantenha-me informado, Lings.
Tariv pigarreou.
- Sim, senhor Tariv, o que descobriu
sobre o lugar onde caímos?
- Capitão, é incrível. Parece que
estamos na Terra ou em Thor. Atmosfera totalmente limpa e isenta de agentes
nocivos, gravidade exatamente 1 g, nenhuma radiação. Podemos sair lá fora e
andar normalmente, sem qualquer proteção.
- Hum, isso é bom. Descobriu mais
alguma coisa?
- Sim. Além de muita vida animal,
uma forte atividade ao norte de onde estamos, talvez uma cidade. Não consegui
ainda detectar vida inteligente no planeta, mas é bem possível que haja algo lá
ao norte, mas...
- Mas...?
- Os sensores não podem ir além de
alguns metros da nave. É como um bloqueio. Não, não foram danificados na queda
da Ísis. Estão operando normalmente,
mas não a nada que eu possa registrar além de 500 metros.
- Isso é muito estranho. Bom, não
podemos ficar aqui, parados, chorando nossa falta de sorte – foi até onde
estava seu imediato. – Lucas, coordene os reparos e o atendimento às vítimas.
Verifique os mortos, quero uma lista de quem são eles.
- Mas, capitão, a nave está
destruída. Partida ao meio. O que iremos reparar?
- Alfen faz milagre com sua equipe.
Veja com ele alguma forma de fazermos a Ísis
voar de novo. Eu irei montar uma equipe para explorarmos este planeta.
- Senhor, sinto muito – Lucas baixou
os olhos. – A subnave que usamos para exploração foi destruída na queda. O
nosso gravicar de superfície está preso nas ferragens da garagem. Não trouxemos
p-jets nem nada. Essa exploração terá
que ser feita... A pé.
Rafael Kyllard passou a mão pelos
cabelos.
- Eu disse ao Mentor para comprarmos
aqueles jatos individuais, os p-jets, e sairmos voando por aí, mas ele só ficava
adiando. E agora que precisamos... Não importa, vamos andar.
O capitão voltou para conversar com seu
cientista-chefe e notou que ele ficara, de repente, triste e desolado.
- Tariv, você está bem?
- A Lings acabou de me informar que
meu amigo Toriav morreu na queda.
- Toriav era um grande cientista,
sinto muito. Faremos uma bela cerimônia
para ele – suspirou, depois mudou o tom de voz. - Vou precisar de você, na exploração deste
planeta.
Embora quase impossível para um
thoriano, geralmente frio, Tariv tinha lágrimas nos olhos.
- Capitão, o senhor é muito
insensível. Caímos e perdemos sete pessoas além de termos muitos feridos.
Estamos perdidos em um planeta desconhecido. A nave está destruída. O senhor não
tem coração?
Kyllard ficou irritado.
- Tariv, estou surpreso diante de
sua reação. Nunca vi um thoriano emotivo. Não sou insensível. Mas do que
adianta chorarmos agora? Temos que sobreviver! Sair daqui! Avisar a UniCiv que há
devonianos lá em cima. E descobrir o que este planeta esconde. Quero você na
minha equipe de exploração. Iremos para o norte, onde você me disse que havia
uma estranha atividade. Quem sabe damos de cara com uma nova civilização?
Danii Trescott levantou de supetão
ao ouvir a conversa e aproximou-se do capitão e do cientista.
- Quero ir nesta exploração. Não
tenho o que fazer aqui, com a nave avariada, e sei lutar muito bem. A
civilização que talvez encontremos pode ser hostil.
- Certo, Trescott. Vá pegar armas e
preparar uma equipe, quero seguranças e cientistas, e chame a senhora Katnik
também.
Lucas, que estava próximo, ficou
irritado ao ouvir o nome da sensitiva.
- Vai levar Luciana Katnik? Não acha
muito arriscado, senhor?
- Não – Rafael deu um meio sorriso.
- Eu a quero perto de mim. Ela pode ser muito útil nessa exploração.
O capitão olhou para a janela-vídeo
mostrando a superfície de Junia. Voltou-se para sua piloto, com um olhar
determinado.
- A equipe de exploração deverá ter nove
pessoas, Trescott. Eu, você, Tariv, Katnik, um cientista, alguma enfermeira que
Lings possa ceder, e três seguranças. Escolha aqueles que tenham experiência em
superfícies planetárias e novas civilizações.
- Entendido, capitão. Prepararei a
equipe agora mesmo.
- Tem duas horas, Trescott. Tariv,
vá com ela, selecione um cientista apto. Eu farei uma vistoria na nave com
Lucas. Azek, a ponte é sua.
***
Rafael Kyllard e seu imediato, Lucas
Silvar, ficaram perplexos diante das avarias da Ísis. Provavelmente ela não voaria mais. Alfen disse que tentaria
trazê-la de volta, mas não dava muitas esperanças.
Estava partida ao meio e com danos
extensos.
Depois passaram na enfermaria, mais
um dos tripulantes havia morrido, totalizando oito mortos. Vinte e dois
feridos. Lings corria de um lado a outro.
- Capitão, isso aqui está uma
loucura!
Rafael olhava a lista de mortos que a
doutora lhe passou. Não havia ninguém que conhecesse pessoalmente, exceto o
ótimo cientista Toriav. Então encarou Prester Lings.
- Está fazendo um ótimo trabalho,
como sempre, com o pouco pessoal que dispõe. Mas preciso de uma enfermeira para
a equipe de exploração.
- Já cedi um enfermeiro excelente
para sua equipe, capitão. Está aguardando junto com os outros selecionados por
Trescott, na escotilha dois.
- Entendido, Lings – ia deixar a
enfermaria quando a médica o deteve.
- Cuide bem do Pedro, ele é meu filho.
É um ótimo aprendiz. Quero que prometa que o trará de volta inteiro, capitão. E
quanto tempo essa exploração vai demorar?
- Não sabia que selecionara o próprio
filho, Lings. Eu cuidarei dele, mas sabe que não posso prometer nada. Espero
que não demoremos mais que cinco dias.
Com um aperto no coração, a
médica-chefe viu Kyllard e Silvar saírem da enfermaria.
***
Na escotilha dois da Ísis, Danii Trescott e Tariv aguardavam
Rafael. O restante da equipe já deixara a nave e testava a atmosfera do
planeta, na superfície.
- Aqui está seu equipamento para
esta exploração, capitão – a seprikana entregou armas e uma mochila antigrav,
preparadas especialmente para Rafael. Enquanto ele se arrumava, disse à Lucas.
- Você fica no comando da nave até
eu voltar. Ajude Alfen no que puder para reparar a Ísis.
- Farei o meu melhor, capitão. Mas
gostaria muito de acompanhá-lo.
Rafael deu um meio sorriso e tocou o
ombro de seu imediato.
- Você será mais útil aqui, Lucas. Confio
em você. Cuide bem do que restou da nave e da tripulação. Voltarei assim que
puder.
A escotilha dois foi aberta, dando
acesso a uma escada bem inclinada. Kyllard inspirou fundo, sentindo o ar
agradável de Junia. Estava quente.
Tomou um susto ao reparar que o céu
era azul e tinha um sol brilhante no poente.
- Mas... Como? Acima de nós deveriam
estar as nuvens da atmosfera de Gigante Gasoso que Junia possui! E Tucana
Beta-A não está tão perto assim para aparecer forte no horizonte!
Tariv começou a descer a longa
escada de alumínio-duranium e soltou uma risadinha curta. Definitivamente ele
era um thoriano bem diferente.
- Não sei explicar porque o céu é
azul aqui em Junia, e porque as nuvens da atmosfera superior desapareceram, ou
não estão visíveis. Não sei explicar também porque Tucana Beta-A aparece tão
forte daqui. Deveria ser um pontinho distante, pela órbita do planeta. E tudo
deveria estar congelado.
Rafael Kyllard sacudiu a cabeça.
- O Mentor disse que você é um
excelente cientista, Tariv, então trate de descobrir o que é tudo isso, afinal.
Mesmo intrigado, o capitão desceu à
superfície. Admirou-se com a quantidade de árvores que circundava a Ísis.
- Nunca vi um gigante gasoso ter uma
floresta tropical!
Trescott ficou ao lado de Rafael e
soltou um longo suspiro.
- Muito semelhante às florestas de
Séprika. Eu nasci e passei minha infância caçando em florestas como estas,
capitão.
Depois de devolver um olhar de
entendimento, Kyllard foi conhecer a equipe.
- Você deve ser Pedro Lings. Sua mãe
é a melhor médica com quem já trabalhei. Ela pediu para ficar de olho em você e
eu o farei.
Pedro era alto, belo, queixo
quadrado e olhos puxados orientais como a mãe. Cabelos lisos e curtos, negros.
Sua voz era grossa e máscula.
- Minha mãe é superprotetora,
capitão. Mas eu sei me cuidar. De todo modo, agradeço sua preocupação pela
minha pessoa.
Depois Rafael aproximou-se de
Luciana, que parecia bem amedrontada.
- Senhora Katnik.
- Porque me chamou para essa
expedição, capitão?
- Temo que irei precisar de seus
poderes mediúnicos.
- Eu não tenho poderes mediúnicos,
capitão, eu sou levemente telepata, e em certos momentos posso ver o futuro,
mas não controlo isso. Não sei o que vou fazer nessa equipe além de atrapalhar.
- Você não vai atrapalhar, Katnik.
No momento certo, saberá como nos ajudar. Fique perto de um dos seguranças, e
qualquer coisa me chame. Estarei sempre ao seu lado – Rafael disse isso olhando-a
de modo enigmático. Depois foi até a mata densa e a examinou. Pediu ao
segurança-chefe da expedição vir até ele.
- Taylor, abra um caminho com seu xaser em
direção ao norte. Nós o seguiremos de perto.
Emprenharam-se na floresta virgem de
Junia durante aquele curioso entardecer do planeta, que teoricamente não
deveria existir.
Logo a noite os atingiu, sem nenhuma
nuvem no céu.
Rafael Kyllard seguiu Mark Taylor bem de
perto, com uma lanterna, enquanto o segurança disparava raios azuis de seu
xaser abrindo uma vereda. Olhou para o céu, e se admirou com a miríade de
estrelas que não deveriam ser visíveis dali. Porém, chegou à conclusão que nada
mais o surpreenderia em Junia.
Foi nesse momento que um grito agudo
cortou o ar.
Capítulo 03
Priscol-Pá agitou suas antenas. Seu
pelo castanho estava ouriçado.
- Encontrei indícios de que a nave
da UniCiv conseguiu pousar na superfície de Junia, capitão-de-frota Lukor-At,
meu senhor.
Repousado na teia central da ponte
de comando da Astrugh, Lukor-At
regurgitou o inseto gigante que devorava.
- O quê? Repita!
- Meus sensores conseguiram penetrar
na densa atmosfera do planeta, com a ajuda da sonda que enviamos. Posso
detectar humanos e outros seres unicivianos vivos, embora a nave deles esteja
bem avariada. Não consigo mais definição nos dados, senhor capitão, meu senhor.
- Excelente trabalho, Priscol-Pá,
logo será agraciado com uma promoção – Lukor-At virou-se para o seu imediato.
- Kark-Li, temos meios de chegarmos
à superfície do planeta?
- Acredito que podemos criar um
escudo de alto poder em torno da nossa nave e tentarmos a descida, mas não sem
perigos, ó senhor, capitão, senhor.
- Tentemos! À glória da União Devoniana!
- Tentemos! – bradaram os outros
tripulantes da ponte de comando da Astrugh.
***
Rafael Kyllard e um segurança correram
ver o porquê do grito. Encontrou Luciana Katnik pálida e Pedro Lings, caído,
com um corte no rosto.
- Ele, ele... Ele...
- Acalme-se, Katnik. O que houve?
Pedro levantou-se com a ajuda de
Corco, o segurança gliesiano que se parecia com um enorme gato gordo, com pelos
castanhos e olhos verdes.
- Ele... Ele foi engolido.
- Quem foi engolido?
Pedro endireitou-se e pegou um spray de saradene, que usou em si
próprio para curar o corte no rosto, que sumiu em instantes. Limpou o sangue
com um lenço. Parecia calmo quando falou, em tom baixo:
- O terceiro segurança, aquele
auroriano Lev-Or. Algo apareceu do nada e o engoliu inteiro.
- Uma cobra... Uma cobra gigantesca
engoliu o homem de uma vez! – Katnik tapou o rosto com as mãos. Chorava.
Rafael sacou seu xaser e, junto com Corco,
emprenhou-se na mata sob a luz de três luas cheias.
O capitão olhou para cima e sacudiu
a cabeça.
- Não deveríamos ver os satélites
naturais de Junia daqui, mas eu desisto de tentar entender esse planeta. Vamos
atrás da criatura que pegou Lev-Or, rápido!
A “cobra” era veloz, mas deixou um
rastro de destruição e gosma pela mata que sob a forte luz das luas - e das
lanternas - foi facilmente alcançada. Corco destruiu sua cabeça com um tiro
certeiro de xaser, quando já podia visualizar a barriga cheia, talvez com
Lev-Or dentro.
Rafael tirou de sua mochila uma faca
linda, presente antigo, e cortou a pele da cobra. Com a ajuda de Corco, puxou
Lev-Or para fora, mas o auroriano já estava morto.
Pedro os alcançou em seguida. Tentou
de todas as formas ressuscitar o segurança, sem êxito.
- Sinto muito. O veneno dessa
“cobra” gigante é poderoso demais. Não pude salvá-lo.
Kyllard ficou furioso, e passou a
mãos pelos cabelos segurando a raiva. Já controlado, ordenou:
- Corco, regule seu computador para
detectar animais assim de agora em diante, e ordene aos demais que façam o
mesmo. Atenção redobrada! Caminhamos pouco, vamos avançar mais mesmo à noite,
porém quero todo mundo em alerta máximo, com as lanternas ligadas e as roupas
protetoras ativadas.
- Entendido, capitão.
O gliesiano saiu em disparada,
estranho para um ser de corpanzil e modos rudes.
- O que faremos com o corpo de Lev-Or?
O levamos de volta à nave?
- Ele sabia o que aconteceria se
fosse morto em ação, Pedro, pois se inscreveu como soldado da Irmandade –
Rafael sacou um pequeno aparelho, um sensor-analisador – chamado senalis - , e registrou todos os dados
de Lev-Or além de coletar seu DNA. Depois pediu para Pedro se afastar e apontou
seu xaser. Desintegrou o corpo do auroriano com um raio azul que emitia forte
som grave.
Pedro Lings fechou a cara.
- Prometa que se eu morrer aqui irá
levar meu corpo de volta para minha mãe.
- Você não vai morrer. Embora eu não
tenha prometido nada à Prester, eu jamais teria coragem de olhar na cara dela de
novo se você fosse morto nessa expedição.
***
O cronômetro de Rafael Kyllard
exibia meia-noite no planeta. Conseguiram avançar bastante pela mata sem mais incidentes.
As luas estavam agora espalhadas pelo céu, mostrando que realizavam órbitas bem
distintas.
- Podemos descansar agora e montar
acampamento. Vamos tomar drazene para
ajustar nossos corpos ao fuso horário de Junia e regular nosso sono. Corco, Taylor,
ajudem o pessoal a montar as barracas, Tariv, faça uma varredura de campo completa
para vermos se estamos seguros aqui e grave tudo o que puder. Peça ajuda à nova
cientista que está conosco, como é o nome dela?
- É Ana Rojas, capitão. Começarei o
procedimento agora mesmo.
- Alguém me chamou?
Ana Rojas era uma mulher exótica e
rechonchuda. Humana, cabelos encaracolados sem cor definida e pele albina,
tinha 38 anos e olhos grandes verdes.
- Você é a nova cientista que o
Mentor contratou a peso de ouro, certo? Vai substituir o falecido Toriav
direitinho agora, está promovida. Ajude Tariv a fazer uma grande varredura de
campo por aqui.
- Obrigadinha capitão – a cientista
sumiu do jeito que apareceu. Kyllard sacudiu a cabeça. Depois se ajeitou,
limpando o uniforme.
- Katnik, venha aqui, quero
conversar com você.
A bela ruiva aproximou-se de Rafael,
cabisbaixa. O capitão a fez levantar o rosto. Perguntou:
- Você está bem?
- Se quer mesmo saber, não estou.
Estou com medo. Vi um homem ser devorado vivo por uma cobra gigante, estamos no
meio da selva de um planeta desconhecido, à noite. Você nem parece ter se
importado com o coitado. Todos aqui são tão frios assim? Quero voltar para a
Terra, não devia ter entrado na Ísis e
nem ter aceitado esse serviço, para começo de conversa.
- Olha... Estou triste sim por
Lev-Or. Mas somos profissionais. Estamos em uma missão importante. Quando
acabar, lamentaremos e vamos chorar pelo pobre auroriano. Agora mesmo, antes de
dormirmos, faremos uma oração por ele. Contudo, não adianta ficar chorando
pelas beiradas. Não vai trazê-lo de volta. Respeitaremos sua memória.
- Vocês da Irmandade são todos
loucos. Bem que meu marido me avisou. Ele não queria que eu viesse. Estou com
medo e com raiva de vocês. Quero voltar para a nave!
- Não vamos voltar à nave agora,
avançamos bem esta noite – Rafael tentou tocar Luciana, mas ela se afastou. –
Olha... Preciso de você. Pode predizer algo sobre esta expedição? Pode enxergar
alguma coisa sobre este planeta ou se existe alguma civilização por aqui?
- Todos temos computadores nas
nossas cabeças, avançadíssimos, eles não podem explicar o que existe neste
mundo esquisito?
- Sabe que não. Junia é complexo,
radiações e sinais estranhos estão por todo lado. Preciso de algo mais...
- Mediúnico? Sobrenatural?
- Sim, chame do que quiser. Preciso
de seus poderes.
- Pois eles me dizem para ir embora
daqui e voltar para a nave, capitão. Tenha uma boa noite!
Rafael ficou olhando Luciana ir para
sua barraca e trancá-la. Suspirou.
***
Amanheceu em Junia. O céu estava
azul, o que era estranho, contudo Ana Rojas e Tariv haviam desistido de tentar
explicar o porquê da alta atmosfera do planeta gasoso não ser visível da
superfície.
Rafael Kyllard espreguiçou-se.
Estava um tanto sonolento, mas o drazene estava fazendo efeito, regulando seu Jet lag, termo que havia sido mantido mesmo
nas viagens interplanetárias.
Luciana Katnik o evitou. Mark Taylor
fez café no aparelho portátil que sintetizava comida e bebida através de massa
alimentar em pequenos discos, tudo trazido na mochila de Corco.
- Está ótimo Taylor. Gostei. Vamos
comer rapidamente e partiremos em quinze minutos. Alerte o pessoal.
O segurança concordou e foi
reagrupar a expedição. Exatos quinze minutos depois, partiram com Mark
liderando e abrindo caminho, seguido de Rafael, Ana, Tariv, Pedro Lings, uma
agitada Danii Trescott, Luciana Katnik emburrada e fechando o grupo, Corco, bem
atento.
A selva fechada deu lugar a uma
floresta de coníferas e a temperatura caiu de repente. Começou a fazer muito frio. Rafael gritou:
- Casacos! Todos usando. Ana, Tariv,
podem me explicar essa queda brusca de temperatura?
Tariv andou em círculo com um
senalis e logo disse à Kyllard:
- Senhor, se voltarmos para a selva
tropical, a temperatura sobe. Aqui esfria. Ou seja, dependendo da área onde nos
posicionamos, a variação de temperatura é brutal. Não há explicação para isso,
capitão.
- Entendido. Vamos prosseguir em
direção ao norte. Agora ficará mais fácil avançar, já que aqui parece um bosque
e é até bem agradável, fora o frio.
Passaram o dia atravessando a
floresta de pinheiros e araucárias, seguindo por um gramado verde e bonito.
Tudo era belo. Havia borboletas coloridas e grandes aves de tons diversos, que
cantavam em uma sinfonia ímpar.
Finalmente atingiram o sopé de uma
montanha, ao entardecer. Rafael Kyllard a avaliou com Tariv e Ana Rojas.
Haveria uma longa escalada.
Os computadores e os
sensores-analisadores ainda indicavam estranha atividade ao norte, além das
montanhas. Era para lá que seguiriam até descobrir o que emanava a energia
incomum que detectavam.
Rafael reuniu o grupo.
- Vamos descansar e dormir um pouco.
Logo ao alvorecer iremos escalar essa montanha até a passagem que podemos ver
daqui. Aqueles que tiverem dificuldades com a escalada falem comigo – ele olhou
para Luciana.
A ruiva devolveu um sorriso.
Aproximou-se e encarou Kyllard.
- Eu sei escalar. Adoro escalar
morros e montanhas. Meu marido e eu praticamos alpinismo, capitão. Quanto a
isso não precisa se preocupar.
- Excelente! Então vamos comer
alguma coisa e descansarmos para amanhã.
Depois do jantar, quando a noite
avançava, Rafael entrou em contato com seu imediato.
- Lucas, aqui é Kyllard. Quero
informações de como estão as coisas aí na Ísis.
- Capitão, seu sinal está muito fraco – realmente a voz de Lucas
Silvar estava quase inaudível, entre chiados e estalidos. – Aqui estamos reconstruindo a nave e captando
estranhos sinais vindos da atmosfera superior. Também recebemos uma mensagem
indecifrável, até agora, de algum lugar ao norte.
-
Mensagem? Que tipo de mensagem!?
- Recebemos uma sequência de palavras esquisitas via frequência de rádio
comum. O tradutor universal descobriu correlação com números na língua de uma
antiga civilização extinta...
- Uma antiga civilização extinta!?
Explique melhor, Lucas.
- A civilização que existiu nos sistemas estelares do Corredor de Luz, a
Civilização Perdida de Tonkskan. Aquela que desapareceu sem explicação. As
cidades estão lá até hoje, em ruínas, e nunca descobrimos muita coisa sobre
eles, exceto que eram humanoides, como nós.
- Entendi. E como era a mensagem?
Fale alto que o sinal está sumindo.
-
Como eu disse antes, o tradutor universal traduziu a mensagem como números: 35,
56, 47, 12, 84. Não sabemos o que significa. Repetiram a mensagem mais algumas
vezes e depois o sinal de rádio sumiu.
- Certo. Mantenha-me informado.
Verifique as antenas da Ísis para
melhorarmos nossas comunicações. Aqui tudo bem, exceto o que lhe comuniquei
ontem, a morte do segurança Lev-Or. Amanhã iremos escalar uma das montanhas
visíveis daí. Kyllard desliga.
-
Entendido capitão. Tenha uma boa noite.
***
Rafael dormia profundamente em sua barraca
quando foi acordado pelos sussurros de Luciana Katnik. Deu um pulo.
- Não queria assustá-lo, capitão.
Luciana estava linda, como sempre.
Seus longos cabelos ruivos mostravam-se bem escovados e usava uma camiseta
térmica cumprida, deixando-se ver belas pernas torneadas, queimadas de sol.
- Pare de olhar minhas pernas,
capitão, e me escute. Tive um sonho muito incomum. Sonhei com um homem alto,
velho e com aparência sábia. Estava quieto de pé sobre um pedestal e apontava
ruínas de uma cidade que brilhava muito.
- Hum, sonho estranho, como tudo
aqui em Junia.
- No sonho, o homem olhou para mim e
depois escreveu no ar uma sequência de números, 35, 56, 47, 12, 84. Aí acordei.
Kyllard deu um salto, ficou de pé e
puxou da memória de seu computador cerebral o que ouvira de Lucas, hora antes.
- Pelas estrelas! Anotei aqui –
apontou para a cabeça - , essa sequência numérica foi transmitida de algum
ponto ao norte deste planeta para a Ísis!
Luciana olhou-o, perplexa.
- E mais, foi em uma língua antiga,
de uma civilização extinta chamada Tonkskan. Luciana, esse homem com quem
sonhou escreveu em algarismos arábicos, como os que usamos na UniCiv?
- Sim, sim, facilmente legíveis,
escritos no ar com linhas douradas.
Rafael passou a mãos pelos cabelos.
- O que significa isso? E o que são
esses números?
- Eu não sei, capitão. Apenas
sonhei. Não tenho ideia do que significam.
- Venha, vamos tomar um café, não
vou conseguir dormir depois do que me contou.
Luciana o acompanhou, pensativa. Na
mesa montada no centro do acampamento, Rafael clicou em café na sintetizadora,
e logo dois fumegantes saíram e foram degustados com prazer. O frio era
cortante.
- Capitão, o homem não me deu medo,
me passou confiança. Mas ele não parecia de todo humano, era muito alto, olhos
que pareciam saber o que eu pensava, uma barba que podia jurar que era dourada.
Tudo nele parecia ser dourado, na verdade.
- Creio que este ser queria se
comunicar com você, e através de sua mente usou os números que conhecemos,
porém, o que não entendo é porque passar essa sequência numérica e não uma
mensagem clara?
- Não tenho ideia. Eu soube de raças
que podiam invadir nossos sonhos...
- Sim, existem, e não são nada
amigáveis. No entanto, acho que quem habita Junia não me parece hostil.
Precisamos chegar ao lugar de onde transmitiram via rádio para a Ísis e onde detectamos grande atividade.
É logo depois dessa cadeia de montanhas... – Kyllard apontou para o alto.
- Capitão, acho que vou tentar
dormir mais um pouco, está muito frio e logo vai amanhecer.
- Certo, eu vou analisar estes
números e ver se encontro alguma correlação com coordenadas ou jogos de
loteria.
- O que? – Luciana riu.
- Boa noite, durma bem, Katnik.
***
Lindsay Tranley estava exausta.
Fugir da Ísis e do olhar astuto do
velho Lucas Silvar, entrar naquela floresta tropical, seguir a trilha deixada
pela expedição de Rafael e escapar de ser engolida por uma cobra gigante, tudo
aquilo a deixou acabada.
Contudo, alcançara a expedição. Lá
estavam eles, ao amanhecer, levantando acampamento. Ficou a espreita. Observou
o homem que amava, atrás de um pinheiro.
- Mark, tente novamente entrar em
contato com a Ísis usando o
equipamento de alta potência. Meu intercom não está conseguindo contato.
- Tentarei, capitão.
- Desde hoje cedo não consigo
contato com Lucas. A interferência está forte demais. Até os senalis estão
falhando.
Luciana arrumava sua mochila quando
estacou. Levantou devagar, evitando olhar para os lados, e foi até Rafael.
- Capitão... Sinto uma presença.
- Presença do homem com quem sonhou?
- Não... Uma mulher... Eu diria...
- Ok, certo, sou eu. Aqui estou –
Lindsay apareceu com um sorriso amarelo no rosto.
Rafael fechou a cara. Suspirou e
passou a mão pelos cabelos.
- Lindsay Tranley. O quê a senhorita a está fazendo aqui!?
- Senhorita? O que aconteceu com
“ah, meu amor, ah, minha putinha”, que você falava quando transávamos?
Todos na expedição seguraram a
respiração.
Se emitisse raios pelos olhos,
Lindsay seria desintegrada pelo olhar de Rafael.
- Estamos em uma missão pela
Irmandade, ou se esqueceu disso, Lindsay? Aqui eu exijo respeito. Eu fui contra
o Mentor mandar você vir aqui para Junia desde o começo.
A tevariana ia responder, mas
Kyllard foi mais rápido.
- Trescott não a chamou para esta
expedição, devia ter ficado na nave, Lindsay. E não é porque eu como você que lhe dou o direito de me
desrespeitar na frente de meus subalternos.
Luciana levantou as mãos.
- Eu não sou sua subalterna, e não
tenho nada a ver com isso, mas acho que essa conversa poderia ser reservada,
capitão.
- Também acho... Mark!
- Sim, senhor!
- Prenda a senhorita Lindsey,
algeme-a e...
- Não vai fazer isso, Rafael! Você
faz isso na cama, me amarra, mas aqui...
- Algeme-a e coloque uma mordaça
nessa boca, depois vou decidir o que fazer com ela.
- Eu sei o que vai fazer comigo. Vai
me bater na bunda e me co...
- Mark, agora!
Mark Taylor aproximou-se e Lindsay
não ofereceu resistência, mas estava às lágrimas. Além de algemá-la, o
segurança a amordaçou.
A raiva do capitão era tanta que ele
sacou de sua faca trabalhada e, com um só golpe, cortou um pequeno pinheiro ao
meio.
***
Já haviam subido parte da montanha
quando chegaram à um trecho muito íngreme. Só mesmo escalando com as mãos e
cordas iriam conseguir subir mais.
Rafael Kyllard deveria decidir sobre
o destino de Lindsay Tranley.
Fazê-la voltar sozinha ou com um dos
seguranças seria arriscado demais. Além disso, precisava de Mark e Corco com
ele. Mais uma cientista no grupo ajudaria, e a tevariana era muito boa em artes
marciais. Se ela fosse obediente e o respeitasse, talvez valesse a pena
mantê-la na expedição.
Luciana puxou Rafael para o lado e
sussurrou-lhe.
- Capitão, é desumano algemar e
amordaçar aquela mulher daquele jeito. E ela não vai conseguir subir isso aí –
apontou para o penhasco.
- Ela não é humana. É tevariana.
- O senhor entendeu. Não pode...
- Mark, solte a senhorita Tranley e
traga-a aqui.
Lindsay, instantes depois, estava
livre, fuzilando Rafael com seu olhar.
- Olha, eu não vou pedir desculpas.
- Desculpas aceitas, Lindsay – o
rosto irônico do capitão não atenuava sua raiva. - Não quero mais brigar com
você, temos uma missão muito importante. Se você cooperar comigo e me obedecer,
me respeitar, pode seguir conosco, do contrário mandarei Mark ou Corco levar
você de volta à Ísis, fui claro?
- Claro como água... Capitão. Vou me
comportar, prometo. Obrigada.
Ela deu um sorrisinho e o encarou. Rafael
suspirou profundamente.
Virou-se e ordenou que Danii
Trescott prepara-se os equipamentos para a escalada, além de organizar o
pessoal.
A seprikana obedeceu prontamente. O
dia estava claro, frio e com poucas nuvens, então não tiveram dificuldades no
começo da longa escalada, seguindo até um platô, muitos metros acima.
Todos usavam ganchos automáticos,
sapatos com grampos e estavam presos uns aos outros por cordas.
Na metade do caminho, Mark Taylor
liderando, avistaram algo grande voando na direção do grupo.
Os senalis deixaram de funcionar,
por causa de forte interferência eletromagnética, assim como os binóculos
eletrônicos e até mesmo os xasers.
Danii Trescott tinha uma visão
aguçada, melhor que a dos outros humanoides. Foi a primeira a perceber o que
era a criatura alada.
- Pela Deusa! Um dragão!