PAGANDO OS
PECADOS
Olá, pessoal. Hoje está quente
aqui. Estou num dos meus raros momentos de descanso, observando esta maldita
prisão de um dos seus pavimentos superiores. Vejo os meus colegas prisioneiros
sofrendo, milhares deles, em torturas indescritíveis. Já lhes disse o quanto
está quente hoje? Mais do que nos outros dias. Que calor! Mas veja lá, aquele
pobre homem, tendo de carregar aquela enorme bola de ferro maciça... Ele era
jogador de futebol. E aquela garota linda? Foi currada tantas vezes que agora
só olha o vazio... Prisão dos infernos! Ah, ah, ah, ah, só rindo mesmo.
Aqui é claustrofóbico. O suor me
arde nos olhos. Ei, vejam ali um amigo meu, sujeito infeliz. Era advogado.
Agora é obrigado a ficar preso, ajoelhado todos os dias, o dia todo. E aquele
outro lá embaixo, vê? Era o garanhão da turma... Aqui nesta prisão que o
Universo esqueceu, ele é sodomizado a cada duas horas... Pobre coitado... Mas
como está quente, hoje!
Maldito lugar dos infernos! Ah,
sim, você quer saber como eu acabei aqui? Bem, primeiro preciso dizer-lhes que
mereci. Mas vamos à minha estória...
Era uma manhã qualquer de um dia
qualquer e eu caminhava em direção ao prédio onde ia atender um cliente... Que
cliente? Não importa... Eu fazia consultoria administrativa, sabe? Dizia que
impostos pagar, quais sonegar, que funcionários cortar... Enfim, como eu ia
dizendo, caminhava em direção aquele enorme edifício na Avenida Paulista, em
São Paulo, de terno e gravata, segurando minha maleta 007 e feliz porque ia
comprar um carro importado... Um sedã de luxo... Lembro-me bem que um menino
maltrapilho pediu dinheiro na porta do prédio e eu lhe dei "um chega para
lá", irritado... Esses mendigos... Deviam morrer todos, não acham?
De qualquer forma, entrei no
prédio e fui ao escritório... Ah, que linda manhã... Tenho saudades de manhãs
assim, azuis, frescas, com aroma de café. Aquele dia foi um dia agitado, porém
comum. Reuniões, decisões, oh, aquele funcionário precisa do emprego? Que se
dane. Mandei que o boicotassem até que pedisse demissão... Para que pagar os
direitos dele? Vive de aluguel com quatro filhos? Idiota, quem mandou fazer
tantos filhos?
A Glorinha do setor de cobrança
era, como direi? Uma penosa. Passei uma cantada nela e fomos almoçar juntos. A
jumenta amiga dela bem que queria ir junto, mas mandei a mocréia passear. Minha
família? Lembro-me que sorri de modo maquiavélico quando deixamos o motel, à
tarde... Minha mulher nunca descobriria...
Enfim, um dia comum. Até a hora
de sair, onze da noite. Várias coisas me detiveram no serviço, e eu detestava
sair tarde. Tinha medo. Andei depressa até a estação do metrô, estação Trianon.
A avenida estava agitada, mas São Paulo era assim mesmo, nunca dormia... Desci
as escadas correndo, comprei o bilhete magnético, mas na plataforma quase vazia
nada do trem aparecer. Consultei meu Rolex de ouro: quase meia noite! Cadê o
maldito trem? Um funcionário do metrô surgiu para anunciar que as operações de
trens estavam suspensas devido à um acidente, e que só amanhã as linhas estariam
restabelecidas.
Estarrecido, perguntei-lhe o que
deveria fazer, uma vez que eu precisava chegar ao Terminal Barra Funda. Meu
ônibus saía de lá, eu morava no interior, em Itapetininga. O bom homem sugeriu
que pegasse um ônibus urbano, três quarteirões descendo a Paulista. Subi às
pressas ao nível da avenida, caminhando a passos largos à procura de um táxi.
Mas então notei, nervoso, que tinha esquecido de tirar dinheiro e dispunha
apenas de vinte reais na carteira... Um táxi para Barra Funda ficaria mais caro
do que isso. Meu cartão de banco ficara com minha mulher.
Caminhei pela larga calçada à
procura do ponto de ônibus, e de fato estranhei que a avenida estava agora um
tanto vazia. Muito vazia? Sim, suponho que nem em feriados estivesse tão
calma... Os carros estavam cada vez mais raros, transeuntes escasseavam, e meu
lábio superior tremia enquando eu divisava um papel solitário, carregado por um
súbito vento quente, naquele início de madrugada.
Uma pessoa veio em minha direção
e a idéia de assalto assaltou-me a mente, então comecei a correr. Mas o sujeito
veio atrás de mim! Incomodado pelo peso de minha maleta, sentia meu coração a
participar de uma corrida de fórmula um, tão acelerado que estava. Porém logo
aquele sujeito de óculos grandes segurou-me e vi que estava tão ou mais
assustado que a minha miserável alma.
- Olha amigo, estamos os dois
aqui sozinhos... - E estávamos mesmo, agora não havia ninguém, exceto os
paquidermes e dinossauros de concreto que nos olhavam com suas janelas. -
Amigo, ouça-me... - Era o rapaz, um tanto jovem, um tanto de cabelos
encaracolados. - Precisamos ficar juntos. Algo estranho está acontecendo! Vamos
pegar o primeiro ônibus que passar e sair daqui. Estou com medo!
E eu também estava, claro, mas
nada disse ao infeliz. E, juntos, achamos um ponto de ônibus, ledo abrigo com
seus cartazes publicitários numa ode ao capitalismo. E eu estava tremendo e
suando frio, a Avenida Paulista vazia, agora total e completamente vazia.
Ninguém!
- O que será que está havendo? -
Perguntei eu. - Nunca vi São Paulo tão quieta.
- Algo de muito sério, amigo.
Algo de muito sério...
E nada de ônibus, e nem sequer
um automóvel mais passava por ali. Apenas algumas luzes nos prédios enormes e
os semáforos, testemunhas silenciosas de nosso crescente pânico.
Uma hora da manhã. Temendo pela
vida de meu Rolex de ouro, disse ao meu novo amigo:
- Vamos andando. Ficar parado
aqui é loucura. Vamos descer a avenida e procurar alguém, ou até mesmo algum
restaurante aberto, loja ou shopping.
Dessa forma começamos a andar
depressa, olhando para todos os lados em sobressalto, e confesso que estava com
muito, muito medo. Não andamos muito e ouvimos uma enorme gritaria e muito
barulho.
- O quê será isso, amigo? -
Perguntou meu sócio na Desgraça S/A.
- Vidros quebrados, gritaria...
- E então engoli a saliva que se juntara em minha boca: - Ah, meu Deus! Um
arrastão! Rápido, corra!
Bandidos, facínoras, criminosos,
pivetes, todo o tipo de marginal subia a avenida, quebrando e saqueando tudo o
que viam pela frente, e corremos na direção oposta, eu, de terno, gravata e
maleta pesada, meu Sancho Pança quase chorando, num ato desesperado. Estávamos
aflitos... Se nos pegassem... Oh, como fiquei com medo naquele instante! Ah,
será que eu estaria vivo para comprar meu carro novo amanhã?
Eles estavam nos alcançando, e
corremos por nossa vidas. Larguei a pasta... Só documentos e CDs de dados mesmo...
Corremos, um coração é capaz de passar pela garganta? Corremos, corremos, tirei
minha gravata, corremos... A turba enfurecida quebrava vidros, arrasava carros,
saqueava vitrines, e gritavam como selvagens, como vândalos.
Sem mais conseguir correr,
entramos pelos jardins de um prédio de apartamentos e nos escondemos em uma
reentrância, enxugando o suor de nossos rostos e nossas línguas podiam sentir o
sabor sujo daquele chão.
- Ah, meu Deus, nós vamos
morrer... O que está havendo em São Paulo? Cadê a polícia?
Eu respondi e minha voz saiu
entrecortada pela minha respiração acelerada: - Eu não sei... Vamos ficar
quietos... Talvez não nos tenham visto e não nos achem aqui...
Porém logo começaram a quebrar a
portaria, próximos a nós, que estávamos na lateral do edifício. E não demorou
muito para nos encontrarem.
Novamente correndo. Uma porta
lateral! A salvação? Não! Era de vidro, quebrado sem piedade por nossos
algozes, homens de cores que eu detestava, com meias nas cabeças, a gritar. Que
horror!
Tomamos o elevador. Tenho agora
a nítida impressão que aquele realmente não era meu dia de sorte. O elevador
ficou descontrolado e começou a subir com muita rapidez, fazendo com que
caíssemos no chão, e observei, horrorizado, os números mudando em alta
velocidade em direção aos céus. Pensei que estava vivendo um pesadelo e
belisquei-me, mordi-me e meu inusitado amigo olhou-me, talvez pensando que eu
havia enlouquecido.
Com um baque surdo paramos no
último andar. Eu estava em frangalhos. Mas estávamos a salvo, por enquanto. A
porta abriu-se e aquele lugar era onde ficava a maquinaria do edifício, onde as
máquinas de ar-condicionado funcionavam e as caixas d'agua descansavam
- Meu Deus... Será que podemos
nos esconder aqui? - Perguntei, sentindo minha boca seca, e larguei longe meu
terno. Abri minha camisa. Meu Barney tremia das cabeças aos pés.
Contudo, antes que tomássemos
alguma decisão, a porta do elevador ao lado do nosso abriu-se. Mais marginais.
Urravam com facas e facões em punho, ávidos de sangue. Corremos de novo,
desesperados, aflitos, quase a chorar e a suplicar por ajuda. Abrimos uma porta
e as escadas se ofereceram, e foi por elas que descemos, e descemos, e
descemos... Já tentaram descer escadas infinitas perseguidos por pessoas que
querem seu escalpo? Não? Experimentem, faz a adrenalina saltar pelo seus
olhos...
Gente subindo. Ajuda, pensei.
Mas qual! Mais bandidos. Vi nos olhos de um deles a morte que queria nos pegar.
Hoje não, Dona Morte! Entramos por uma porta em um dos andares, vigésimo, creio
eu. Andamos, batemos nas portas daqueles apartamentos cegos, surdos e mudos.
Meu comparsa no desespero
ajoelhou-se diante de uma daquelas portas e chorou, esmurrando a madeira.
Ergui-o, ainda me restava a dignidade, arrastei-o pelo corredor, pois que agora
os Homens do Mal estavam próximos. Corremos. Dobramos a esquina do corredor.
Corremos pelo corredor... Redundante, não? Vocês podem imaginar a minha
aflição, o meu medo ali, naquele lugar? Ah, não, acho que não. Sabem, o temor
de morrer estraçalhado, ser humilhado por pessoas horrendas é algo
indescritível, então apenas tentem imaginar, porque não perderei meu tempo em
descrever meu pânico. Só digo-lhes que meu Starsky tinha se mijado todo.
Havia um corredor cheio de
portas, uma na sequência das outra, sem fechaduras. Fechávamos uma e eles
abriam outra, facas entre os dentes. Que estranho, lembro-me que pensei na hora
com meus botões de minha suada camiseta Armani, esse corredor parece não ter
mais fim, parece na verdade que nem estamos mais naquele edifício que havíamos
entrado! Nossa mente pode pregar peças quando estamos em perigo.
Então uma linda mulher, de pele
negra luzidia e cabelos curtos cortados tipo tigela, emoldurando um rosto de
olhos de jabuticaba, estava à nossa frente. Vestia uma saia de classe e estava
tão assustada quanto nós.
- Puxa vida... O que está
acontecendo?!! - Perguntou.
Respondi-lhe, tentando ser o
homem corajoso que eu não era:
- Um arrastão monstruoso atrás
de nós. Tem alguma saída daqui?
- Sim, venham, existe uma escada
de emergência contra incêndio atrás daquela porta, podemos descer e sair pelos
fundos do prédio!
Eles estavam nos nossos
calcanhares agora. A última porta tinha um trinco daqueles de girar. Eu tremia
tentando fechá-la, eles empurravam a porta, a negra e meu amigo tentando
ajudar-me, seríamos pegos, a porta não fechava, a maldita!
Mas fechou. Teríamos algum tempo
antes que aqueles malvados conseguissem arrombá-la... Descemos então a estreita
escada de emergência, meu amigo Garfunkel perdera os óculos, minha deusa negra
segurava a minha mão... Aquela mulher salvadora e linda fizera com que eu
esquecesse temporariamente meus preconceitos.
Pelos fundilhos do prédio, calmo
e tranquilo na madrugada quente do verão paulista, saímos. Estávamos salvos,
afinal.
Andamos por um jardim escuro e
saímos em uma rua bem iluminada e agora alguns carros passavam ao longe.
Caminhamos apressadamente, em silêncio, minha Dama de Ébano a tremer, meu
Tonico enxugando o rosto com seu lenço.
Avistamos então uma rua mais
movimentada e uma praça de táxis. Suspiramos intensamente. Salvos, afinal.
Livres. Libertos do pesadelo.
Perguntamos ao primeiro da fila:
- O que está havendo em São
Paulo?
O motorista, um senhor grisalho,
magro e de óculos frágeis, pareceu não entender:
- Havendo? Que eu saiba, nada...
Segurei o nobre homem pelos
colarinhos da camisa puída:
- Mas estava tendo um arrastão
na Avenida Paulista!
- Um arrastão? Ué... Eu não
estou sabendo de nada... O rádio está ligado e não houve nenhuma notícia. Não
está havendo coisa alguma, amigo... Olhem em volta, vêem alguma coisa de
anormal?
E não havia nada mesmo, apenas o
trânsito, buzinas, pessoas, tudo na mais santa paz. Nós três nos entreolhamos.
Bem, pensei, talvez estivesse
mesmo ficando louco. Ou talvez a notícia não tenha chegado às rádios. Ou até
aquela praça, embora estivéssemos à poucos metros da Paulista...
Virei-me para Pérola Negra e
para Robin:
- Escutem, você viram o mesmo
que eu, não viram?
- Claro... - Disse o doutor
Watson. - Até me mijei todo... Eu não estava sonhando...
- Nem eu! - Desta vez foi Olhos
de Jabuticaba quem falou. - Aqueles marginais iam me estuprar, com certeza!
Não, temos que ir embora daqui, nunca mais volto à São Paulo!
- Mas eu só tenho vinte reais! -
Afirmei, exibindo para eles minha carteira que eu comprara em Paris.
- E eu não tenho nenhum tostão!
- Disse Barrichello.
- Eu tenho uma nota de cem!
Salvo novamente pela Orquídea
Negra. Preciso rever meus conceitos... Tomamos
o táxi. Finalmente pude relaxar. Decidi que no dia seguinte iria entrar com um
processo contra a prefeitura por tudo aquilo. E aquela mulher linda no banco da
frente, eu lhe passaria uma cantada, levaria para um motel e depois a
chutaria...
Andamos alguns quilômetros
quando entramos no túnel do Anhangabaú. Mas aquele túnel apenas descia, e
descia... Algo estava errado, cadê o fim do túnel? Meus novos amigos também
perceberam que aquilo não era normal.
- Motorista! - Bati em seu
ombro. – Motorista! O que houve com este túnel? Ele está diferente!
A Whitney Houston berrou... Um
grito estridente. Posso afirmar-lhes que fechei os olhos com o som agudo martelando
em meus ouvidos.
O suave senhor motorista daquele
táxi virou-se. Tinha a pele vermelha, chifres e língua bipartida. Sorriu com os
caninos enormes de fora, e tudo tornou-se quente. O túnel teve as paredes
tingidas de sangue.
- Olá. Sou um dos filhos de
Lúcifer, e este é o táxi para o inferno!
Dos bancos, tentáculos vermelhos
e quentes saíram do nada e começaram a nos espremer. Donna Summer berrava
enquanto era estraçalhada no banco da frente, Póllux ao meu lado olhou-me com
desespero até que seus olhos espirraram para longe.
Antes de morrer esmagado pelos
tentáculos, em meio a uma dor lancinante, ainda ouvi nosso motorista dizer:
- Viemos buscar toda a
Humanidade. Duvido que alguém preste neste mundo, concorda comigo?
Mas, como poderia responder-lhe,
se meu corpo transformara-se em apenas orgãos retorcidos?
Pois é, amigos. Eu lhes disse
que esta prisão é dos infernos! Bem, é o próprio inferno... Nem Dante imaginou
algo tão horrendo. E como faz calor aqui! Como eu me sinto? Hã... Sei lá...
Nada de mulheres, móteis, carros de luxo... Apenas sentar no colo de um demônio
todos os dias... Hummm, vou lhes dizer, é bem dolorido... Ser todo cortado com
lâminas e depois passar sal pelo corpo, e então tomar banho de álcool... Ah,
não se preocupem, a gente não morre... Já estamos mortos, de qualquer forma...
Bom, até logo. Vejo vocês por
aqui em breve, hein?
"Segurando minha maleta 007" kkk Muito bom o conto, o final é medonho, mas muito original!
ResponderExcluirSou seu fã Vitor, parabéns por outro maravilhoso conto literário!
Hahahah... ai que medo! Adorei!
ResponderExcluir