quarta-feira, 26 de maio de 2010

A Guerra dos Impérios - Prólogo (Final)

Meses depois

Atron ainda não havia conseguido uma nave para voltar à Égon, à cidade de Mégan e ao teletransporte espiritual que o devolveria à Tirênia. Não havia meios de driblar a rigorosa fiscalização em cima das poucas astronaves restantes em Tarrent.
Uma nave estelar era agora artigo de luxo naquela região moral e tecnologicamente decadente.
Durante todo aquele tempo em que vivera em Tevária, Atron K-Rosam’vev morara na pequena casa feita de restos de carbonite e concreto plástico queimado de Kim Kay-War. O pai da tarrentiana morrera no mar um ano antes, durante uma forte tempestade. Agora Atron, ou Argon como ela o conhecia, era tudo que lhe restava.
Apaixonaram-se. Kim admirava o corajoso e revolucionário Atron, lutando pela causa dos pobres tarrentianos contra a prefeita, o governador e o chanceler Adrin Duprek.
Roubava da elite, minoria, para dar aos miseráveis e famintos plebeus que um dia foram seus súditos. Já corria por todo o mundo de Tarrent que um último espécime lemântico trazia o terror para os ricos para dar de comer aos pobres.
Atron K-Rosam´vev casara-se com Kim Kay-War no fim daquele ano. Era idolatrado pela população carente e perseguido pelas milícias do chanceler.

Em uma manhã quente de verão, e Delta Majoris brilhava intensamente, aquecendo a praia agora limpa em um multirão organizado por Atron, o casal resolveu pescar um pouco, coisa que faziam com certa frequência.
Aventuraram-se no mar calmo e já longe da costa, molhados e com muitos peixes no porão, resolveram descansar sob o sol.
- Argon... Nunca me senti tão feliz. Só uma coisa me deixa triste.
- O que a deixa triste, amor? – Atron a encarou, com ares de preocupação.
- Nunca poderemos ter filhos. Você é um lemântico e eu, uma tarrentiana. Nossos DNAs são completamente diferentes. Totalmente incompatíveis.
Atron olhou o horizonte azul e deixou-se entregar ao balanço do barco.
- Isso é verdade. Mesmo que estivéssemos no auge do Império Lemântico, os médicos não conseguiriam fazer com que pudéssemos ter filhos.
- Ao menos podemos fazer amor... E você sabe amar uma mulher como poucos, meu querido.
Eles se beijaram. Porém Kim notou as lágrimas no rosto ovóide de Atron.
- O que houve? Sente-se triste por não podermos ter herdeiros?
- Sim, mas... Também porque meu único filho, o filho que já tive, desapareceu na batalha de Égon anos atrás, com minha falecida esposa. O corpo dela e de Betram nunca foram encontrados.
- Betram? O príncipe Betram? Seu filho... Espere um pouco... – Kim contornou o rosto de Atron com as mãos e então seus lábios tremiam, ela toda tremia.
- Porque nunca me contou? Eu sempre suspeitei, mas achava que não era possível... Você é o rei Atron. Atron K-Rosam´vev, nosso rei, nosso igni... Pelos deuses...!!!
Atron ficou algum tempo em silêncio, pensativo. Então contou tudo o que acontecera desde que Leman, que no futuro seria conhecido como o planeta Marte, fora arrasado e o Império Lemântico caíra. Contara também sobre Martogh, sobre Zonos, sobre Liany. Sobre seu poder de mudar de corpo.
Kim digeriu lentamente as palavras de seu marido. Podia entender porque escondera sua identidade dela e o perdoara por isso. Eles se abraçaram e depois trocaram um longo beijo.
Foi quando Atron K-Rosam’vev foi mortalmente atingido nas costas. As balas explosivas atravessaram sua grossa carapaça e provocaram uma forte hemorragia interna, perfurando os pulmões. Estava ainda consciente, nos braços de Kim, mas estava confuso e fraco.
Barcos da patrulha da Milícia Pública haviam localizado o casal. Em minutos estavam cercados. Kim Kay-War tentou proteger seu marido de todas as maneiras.
- Parem! Não podem fazer isso! Ele vai morrer!
- Sobreviverá até ser executado em praça pública daqui alguns minutos. – Disse um dos guardas. – Fique quieta ou atiraremos em você também.
- Ele sempre ajudou o povo de Tarrent em tudo! Isso é um absurdo!!
Kim levou uma forte coronhada de um dos guardas e caiu desfalecida. Atron, quase sem forças, avançou sobre ele e quebrou-lhe o pescoço com extrema rapidez. Tomou-lhe a arma e disparou, matando muitos dos homens da milícia e explodindo um dos barcos até ser dominado por doze soldados do exército do chanceler, que haviam acabado de chegar pelo ar.
O casal foi levado para a praia. Em fileira, alguns dos líderes da revolução promovida por Atron já haviam sido cruelmente executados e outros aguardavam a execução. Atron estava fortemente amarrado e muito fraco, cuspindo muito sangue e sabendo que não sobreviveria. Não naquele corpo, seu corpo original.
O povo se rebelera em muitos pontos de Tevária e em toda a Tarrent, pois a notícia que o nobre lemântico que ajudava a todos iria ser executado espalhou-se muito rapidamente.
Kim recobrou a consciência e foi segura por dois soldados longe do marido. Ela estava ofegante e começou a chorar, desesperada.
- Nãããoooo!!! Isso é um erro!!! Não! Não o matem, por favor...
Atron foi colocado de joelhos na areia, e cinco daqueles homens do chanceler o cercaram, apontando suas armas de balas explosivas para ele.
Um deles, que parecia ser o líder da tropa, disse.
- Tragam a mulher dele aqui primeiro. Ela será executada antes.
Atron cuspia sangue e mal pode protestar. Sua mente estava turva.
Kim Kay-War foi amarrada à um poste. Ela se debatia e chorava.
- Agora, lemântico, assista a execução de sua mulher. Logo se juntará à ela.
E o líder da tropa fez um sinal. Um soldado colocou sua pistola de balas comuns na cabeça de Kim. Ela parou de chorar e disse à Atron:
- Eu te amo muito, meu querido. Lembre-se disso. Agora eu me vou, mas quero que use este corpo para se vingar... – E piscou para ele, parando de se debater e ficando estranhamento serena diante da morte.
- Atire! – Ordenou o comandante.
- N...n..n... – As palavras do igni lemântico não saíam de sua boca.
O soldado atirou e Kim Kay-War estava morta.
Satisfeito, o comandante voltou-se para os soldados que cercavam Atron.
- Executem-no!
Os cinco homens tarrentianos atiraram e liquidaram o rei e igni do outrora poderoso Império Lemântico.
Confuso, Atron quase não pode se lembrar do rito de passagem. Assim como sua irmã, esquecera o que tinha de dizer e pensar, somando-se à isso o fato que estava muito ferido. Levou tempo demais. Passou dos quinze minutos que dispunha e parte de suas memórias foram esquecidas.
A Luz o chamava para o Além-Universo, a Terra dos Mortos. Sentiu-se feliz ao desencorporar e seguiu por um túnel brilhante e aquecido, deixando para trás a mesquinhez e ignorância dos seres de seu Universo.
Mas sabia que tinha uma missão... Mas qual seria? Sabia que era muito importante voltar. E, mais que tudo, sabia que tinha de vingar os justos que o ajudaram na Revolução Tarrentiana e também vingar a morte de sua mulher.
Tinha de voltar. Lutou contra o que o puxava para o Outro Lado. Fixou a mente no corpo de Kim, ainda amarrado ao poste. Sentiu um violento “puxão” e a encorporou. Imediatamente o cérebro de Kim expulsou a bala e se regenerou. A alma de Atron permeou aquele ser que pouco antes havia sido sua esposa.
Ficou calado, imóvel e de olhos fechados. A mudança de corpo sempre seria muito dolorosa e complicada para Atron e Liany, algo muito ruim de se experimentar haja visto a enxurrada de memórias e a personalidade da pessoa que ali vivera que comprimiam sua própria mente. Ainda mais sendo a primeira vez que fazia aquilo.
Mas agora Atron K-Rosam’vev estava vivendo no lugar de Kim Kay-War.
Não demorou muito e, ainda amarrado(a), com o rabo dos olhos viu, sem nada poder fazer, vários amigos e amigas que o ajudavam na revolução serem cruelmente executados naquela praia agora tingida de sangue vermelho e roxo.
Dois soldados se aproximaram dela.
- Vamos estuprar esta vaquinha antes que joguem seu corpo na fogueira!
- Vamos, hehehehe, tô sem nenhuma muié faz tempo!
Desamarraram Kim e assim que se viu solta usou as mãos para apertar com muita força o saco escrotal de cada um, que entre perplexos e doloridos nem puderam gritar. Caíram de joelhos, e Kim usou o próprio joelho para acertar o queixo de um enquanto desferia um violento soco no outro, pondo ambos fora de combate.
Arrumou suas roupas, tomou as armas dos soldados e, sabendo que não havia mais nenhum aliado seu vivo naquela praia amaldiçoada, deu uma última olhada em seu antigo corpo de lemântico jogado na areia, em meio à uma poça de sangue roxo, e fugiu por entre as casas que nos últimos anos ajudara a reconstruir.

Logo a população a acolheu. Olhando o movimento de tropas pela janela de uma casa no alto de um morro, Atron sentia-se estranho como uma mulher tarrentiana. A joelhada e o soco que dera nos soldados, que antes sendo lemântico não o faria sentir nem cócegas, agora provocava inchaço, roxidão e dores fortes.

Todavia agora era Kim Kay-War. E ainda assim continuava sendo Atron K-Rosam’vev. Iria se vingar de todos, ia libertar aquele povo oprimido e depois... Depois tentaria se lembrar quem fora Martogh. Onde ficava Tarínia, o lugar que recebera aquele estranho dom de mudar de corpo – pois suas memórias danificadas confundiram Tirênia com Tarínia – e quem fora Zonos, afinal. Tinha perdido boa parte das lembranças de sua vida anterior, Contudo, naquele momento, nada mais importava, pois perdera sua esposa e tinha um mundo inteiro para salvar.

sábado, 15 de maio de 2010

A Guerra dos Impérios - Prólogo (Parte II)

Cinco anos depois

Ütarash, um bandido de Daryani, conseguira descobrir onde estava Zonos e também copiar as chaves de sua prisão. Tentaria com um grande exército dary - os cultuadores de Zonos chamados zinedistas - invadir o templo de Anuep e libertar o demônio do Anti-Universo para unir-se à ele em uma nova onda de terror.
Martogh voltara de seu império, em uma galáxia satélite da Via Láctea, e pedira que os reis fossem atrás de Ütarash e seu exército e os derrotassem.
Atron e Liany arrasaram com noventa por cento dos zinedistas, mas Ütarash havia escapado. Martogh, sem ter notícia dos irmãos lemânticos, conseguiu prender Ütarash e transformá-lo em uma estátua, que no futuro seria conhecida como estátua Zidrah.
Voltou para Tarínia, capital de seu império, para achar um meio de destruir de vez Zonos, achando que Atron e Liany estavam mortos.
Mas não estavam e voltaram à Anuep meses depois. Contudo, Martogh jamais ficaria sabendo disso ou retornaria para a Via Láctea... Uma doença dizimou quase todos os maithens, restanto uns poucos espalhados pelo Universo afora...

Doze anos depois

A dura missão de guardar Zonos era realizada alternadamente pelos irmãos. Enquanto o demônio encarnado estava incomunicável no subsolo do templo de Anuep, um deles ficava verificando os equipamentos da prisão ou estudando na enorme biblioteca; ou ainda treinando no ginásio. O outro voltava para o ponto da galáxia de onde vieram, voltando ao antigo corpo, nas ruínas da cidade de Mégan, capital do antigo planeta turístico de Égon.
Era a vez de Atron K-Rosam’vev retornar onde um dia existira seu Império. Voltava disfarçado. Entre as ruínas da antiga cidade lemântica, pegava uma nave mercante comum e viajava para os planetas caídos na barbárie que se instalara com a queda de seu reinado e da ordem, ou para mundos de reinos oportunistas que não mais tinham de enfrentar a força lemântica ou a de Zonos.
Sem mais ninguém de sua espécie vivendo por aquela região, aparecer como ele era – um lemântico – podia causar muita confusão. Alguns adoravam os seres de Leman, a ponto de os considerarem deuses, e outros os odiavam, pois antes da queda do Império eram subjugados e tinham de seguir a Lei.

Desta vez Atron iria investigar uma antiga e próspera colônia chamada de Tarrent, que no futuro mudaria seu nome para Tevar. Estava a procura de uma forma de impedir a decadência dos costumes morais e da tecnologia nos planetas agora largados à própria sorte e ao mesmo tempo encontrar uma forma de destruir Zonos, livrando sua irmã e a ele próprio do pesado fardo de vigiá-lo.
Usava as roupas e a máscara de um mercador draki. Pousou na cidade-capital, Tevária, e logo olhava para os edifícios decadentes e as estradas cheias de entulho. Caminhou pela antiga e bela praça central, agora largada aos ratos, entre lixo e crianças tarrentianas sujas que bricavam na lama. A praça ficava em um platô de onde se via o resto da cidade litorânea na parte de baixo. Da amurada, observou triste que a maioria das edificações, outrora belíssimas, estava destruída ou danificada, do jeito que o último ataque da frota de Zonos deixou.
Descendo as escadarias imundas até a cidade baixa, andou entre os cortiços cheio de tarrentianos miseráveis, famintos e de olhares tristonhos. Segurou a raiva engolindo seco, enquanto lembrava da felicidade daquele povo de orelhas pontudas e cabelos cor-de-trigo, quando sob sua égide.

Mas Zonos e os zonoístas, seus seguidores, com suas naves-planeta poderosíssimas, arruinaram com tudo. Mataram milhões. Arrasaram com a galáxia inteira. Deixaram para trás, ao serem derrotados pelos maithens, bilhões como aqueles tarrentianos esfomeados.
A praia estava coberta de sujeira, algas mortas e restos de naves e embarcações. O sol muito amarelo de Tevar, Delta Majoris, pouco aquecia, estava frio. Era inverno naquela época do ano na região. Atron decidiu voltar à Tirênia, ao templo de Anuep, pois achava naquele momento que nada poderia fazer para ajudar seus antigos súditos.
Mas então algo o atingiu na cabeça. Atacado de surpresa, por trás, foi surpreendido por ladrões que o esfaquearam, arrancaram quase todas as suas roupas e tomaram seus poucos pertences.
Só de roupas de baixo, o antigo rei estava desfalecido na praia de areias amarelas. Seu sangue roxo passou a misturar-se com as ondas da maré que subia rapidamente. Uma tarrentiana aproximou-se e ficou em estado de êxtase.

Arrastou o lemântico até a casa de sua família com muita dificuldade. Seu pai era um pobre pescador e estava no mar, e sua mãe havia morrido no último ataque dos zonoístas. Era filha única, muito bela, tez alva, orelhas pontudas e cabelos loiros, parecia uma ninfa de olhos verdes.
Seu nome era Kim Kay-War.
A tarrentiana tratou de Atron e provavelmente salvou-lhe a vida. Quando ele despertou, horas depois, Kim sorriu-lhe e disse, dando-lhe de beber.
- Tome, é uma antiga receita de minha avó. Vai lhe fazer bem. Eu... Eu... Eu simplesmente não acredito! Encontrar um lemântico vivo! Pensei que não existiam mais!
O antigo rei bebeu e então recostou-se no travesseiro de penas.
- Um lemântico vivo graças à você. Obrigado... Seu nome é?
- Kim, da família de pescadores War e da casa de Kay. Você não devia estar aqui em Tarrent. O chanceler Adrin assumiu o governo do planeta há pouco tempo e tem dito nas transmissões que agora somos um povo livre e que os lemânticos nos oprimiam.
- O quê? Mas... Mas antes Tarrent era livre e próspera. Leman só mantinha a ordem, mas ajudava...
- Eu sei, eu sei, muito de nós sabem e sentem saudades do antigo Império Lemântico... Mas, como é seu nome, senhor?
Atron não podia dizer quem era. Tomou o nome de um antigo amigo emprestado.
- Argon. Argon X-Valet.
- Pois então, senhor Argon, o chanceler quer apenas se firmar no poder, cobrar impostos absurdos e largar o povo na miséria.
- Ajudarei seu povo no que for possível, senhorita War.
- Gostaria que me chamasse de Kim.
- Só se me chamar de Argon apenas. Ajudarei no que puder, mas preciso voltar à minha nave. Não tenho muitos recursos, mas farei o que estiver ao meu alcance.
Atron pensava nos suprimentos do templo de Anuep e no que poderia pegar para ajudar aquele pobre povo faminto. E poderia ainda liderá-los em alguma espécie de revolução.
- Está muito fraco, Argon. Além do mais há soldados do chanceler por todo o lado. Se o virem, é capaz de o executarem. Alías... O que aconteceu com você?
- Fui atacado por ladrões.
- Sim, isso agora é comum, não há mais segurança nenhuma por aqui...
Atron levantou-se com dificuldade, os cortes em sua carapaça foram feitos com facas-laser e doíam muito.
- Preciso mesmo ir, Kim. Se ficar aqui e for descoberto, pelo que me conta ponho em risco você e sua família. Obrigado pelas roupas, vou pagar por elas.
- Não será necessário, Argon, são roupas velhas. Vou ajudá-lo a disfarçar-se e irei com você até sua nave. Ela está no estacionamento da Cidade Alta?
Atron ficou de pé, mas estava atordoado e enfraquecido. Perdera muito sangue. Mesmo assim disfarçou-se bem, colocando a máscara draki.
- Já anoiteceu e acredito ser muito perigoso você sair agora. Eu sei me cuidar, Kim, mesmo assim agradeço muito sua ajuda. Eles levaram minha arma, pode arrumar algo com que possa me defender?
Kim Kay-War pegou um enorme facão de seu pai.
- Fique com isso. E tome muito cuidado, Argon. Vou vê-lo novamente?
Enquanto deixava a casa, Atron disse sem se virar.
- Espero que sim, tarrentiana. E espero trazer suprimentos... E esperança.

Subiu as escadarias agora desérticas na noite silenciosa. As quatro luas, uma de cada cor, projetavam sombras bizarras em meio as ruas decadentes.
Ouviu passos leves atrás de si enquanto caminhava, mas não se virou, apenas apertou o passo e pousou sua mão no cabo da peixeira.
A chegar no estacionamento, sua nave não estava mais lá. Não havia mais nave alguma. O local estava destruído. Ouviu vários passos cercando-o por trás e então sacou seu facão e virou-se, pronto para a luta.
Em torno dele, garotos tarrentianos sujos e de olhares tristonhos.
- Tem algo para comer, senhor? – Um deles pediu.
Atron relaxou. Ao ver aquele estado de miséria, não pode impedir as lágrimas de rolar. Mas ele não tinha nada além da peixeira e de roupas velhas.
Olhou em volta do lugar onde estava. Adiante das casas às escuras e edificações destruídas, uma mansão chamou-lhe a atenção. Bem iluminada e inteira.
- Quem vive ali, crianças? – Apontou.
Uma menina de olhos grandes e cabelos empastados respondeu:
- A prefeita, senhor.
Atron K-Rosam’vev suspirou. Olhou novamente a meia dúzia de crianças e então começou a subir a viela, decidido:
- Esperem aqui. Eu já volto. – Tornou a embainhar seu facão.
Bateu na porta trabalhada de dupla folha. Um tarrentiano com cara de poucos amigos, feio e de ar medíocre, atendeu e o mediu.
- Sou um mercador draki e gostaria de ter com a prefeita.
- Ela só recebe na prefeitura e em horário público. Amanhã pela manhã dirija-se ao edifício laranja na Praça Central e faça seu pedido de audiência.
E bateu a porta na cara de Atron, que não estava acostumado com tal tratamento. Com a paciência esgotada, ainda assim o igni controlou-se e sem fazer ruído contornou a mansão pelo jardim bem cuidado, item raro em Tevária.
Pode ver pelas vidraças das janelas ovais da face leste a sala de jantar. Ao que parecia, a prefeita e sua família já tinham jantado e havia muita sobra de comida à mesa. Atron pode perceber que não havia ninguém ali no momento e forçou a vidraça, que cedeu e abriu. Entrou silenciosamente e limpou todos os pratos e travessas, ainda com muitos alimentos, numa enorme baixela. Ia sair com a baixela quando foi supreendido por um soldado da milícia pública.
- Alto lá, mercador! Está invadindo a residência de sua autoridade, a prefeita de Tevária! Está preso! Fique onde está e coloque as mãos onde eu possa ver!
O soldado estava na janela. Devia estar patrulhando a mansão. Atrás de sua máscara, Atron sorriu. Ele sozinho já enfrentara hordas de zonoístas e não era um pobre militar tarrentiano que iria detê-lo. Mas não ia matá-lo, pois sabia que ele apenas cumpria seu dever.
Sabia também que a arma de raios laser que aquele soldado portava era limitada. Deixou a baixela na mesa e pegou uma travessa de alumínio reluzente com rapidez. Com ela refletiu a luz da sala de jantar na cara do pobre cabo, que disparou sem mirar. Atron fez com que o raio laser se refletisse na bandeja e voltasse no ombro do tarrentiano, que berrou e soltou a pequena pistola.
O igni correu até ele e o socou no queixo, colocando-o fora de ação. Tomou sua pequena arma e a examinou:
- Fraca, mas por hora servirá para uma defesa rápida.
Pegou a baixela cheia de comida, restos do jantar da prefeita, e saiu às pressas dali antes que alguém fosse checar o barulho.
Feliz, distribuiu a comida para os famintos, que devoraram o conteúdo da baixela em minutos.
Sabendo que estava preso em Tarrent até conseguir uma nave, voltou para a casa de Kim Kay-War. Pois não lhe ocorria ficar em qualquer outro lugar naquela noite fria, e não haveria meios de comunicar-se com sua irmã, no centro da Galáxia.

Três anos depois

Liany nunca encontrara Atron. No dia em que resolveu deixar Tirênia a procura do irmão que não voltara, fora capturada em Mégan por saqueadores piratas. Os fora-da-lei odiavam os lemânticos, que antigamente os caçavam pelo espaço, e assim executaram Liany, decapitando-a.
A sorte da igni foi que pouco antes uma dary também fora executada. Mas, assim como Atron perceberia depois, Liany não lembraria de todo o rito de transferência da alma, e seu espírito quase se perdeu.
Eles dispunham de apenas quinze minutos para a migração. Liany levou quase vinte. Já ia em direção à Luz, quando incorporou a dary, Arin Deris. Mas ela estava sem a cabeça, pois também fora decapitada. Contudo, o corpo receptor, que obrigatoriamente tem de estar morto e não pode estar em muito mau estado, regenera-se uma única vez ao receber a alma nova, seja de Atron ou Liany.
E assim, sem que os piratas vissem, a pobre dary arrastou-se até onde estava sua cabeça e a colocou no lugar. Então a pessoa que fora Arin Deris e agora era Liany, abriu os olhos e voltou a respirar.
A demora na troca de corpos fez com que boa parte da memória de Liany não fosse armazenada. Ela esqueceu-se da prisão de Zonos, de parte de sua missão e só sabia que podia trocar de corpo e fora uma rainha lemântica.
Mesmo assim, como uma dary de pele azul e olhos amarelos, recebendo parte do caráter e das memórias da Arin Deris original, Liany rolou para atrás das grandes caixas do saque e escondeu-se.
E escondeu-se mais tarde em uma das naves dos piratas, deixando Égon, sem mais lembrar-se de Tirênia, Martogh ou do teletransporte espiritual. Sem saber que ali começava uma busca por seu passado lemântico e o porquê de ter a habilidade de trocar de corpo e tornar-se quase imortal.

quarta-feira, 12 de maio de 2010

A Guerra dos Impérios

Prólogo (parte I)

Atron apenas observava a paisagem desértica. O céu era de um verde claro com uma densa faixa de estrelas que o cruzava de norte a sul, de maneira estupenda, e a luz parecia vir de todo lugar. Mas nada havia até o horizonte além de areia e areia, de um vermelho estranho. Aqui e ali o vento rodopiava e o silêncio era completo.
- Venha, irmão, Martogh nos chama. – Liany avisou.
Atron deixou a imensa sacada para adentrar o fantástico templo de Anuep. Estava triste, ou melhor, estava arrasado. O incrível Império que seu avô construíra e que na terceira geração dos K-Rosam’vev dominava um terço da Galáxia havia acabado. Sua raça, quase extinta. De fato, até onde se sabia, apenas ele e sua irmã haviam restado dos bilhões de lemânticos que outrora povoaram seu império.

Martogh não era lemântico. Era um maithen. Uma enorme lesma que estava sobre uma pequena plataforma esperando os antigos reis de Leman.
Atron e Liany aproximaram-se do triskaj dos maithens, e este, pomposamente, ergueu-se. Em demanedo, a língua falada e escrita dos lemânticos, Martogh conversou com ambos de maneira telepática:
- Sei que ainda não se recuperaram do acontecido. Talvez nunca se recuperem. Sei que o único consolo de vocês é ver Zonos preso e todo seu poderio derrotado, destruído ou disperso.
Atron suspirou. Zonos, agora sabia, viera do Anti-Universo, era um anti-ser, um imperador negativo... Um demônio das antigas profecias e lendas.

Zonos formara um imenso exército que quase conquistara toda a galáxia da Via Láctea e adjacências. Derrotara o Império Lemântico, o maior da época no Universo Conhecido. Derrotara ele, o igni Atron, um imperador e rei justo e leal com seus trilhões de súditos de diversas raças e credos, espalhados por miríades de planetas. Derrotara sua irmã, imperadora e rainha, Liany, A Benfeitora.

E agora, da espécie daqueles seres humanóides altos, encorpados, cabeça ovóide e carapaça nas costas e braços, só restavam ele e sua irmã... Pelo menos era o que acreditavam naquele momento.

Atron K-Rosam’vev saiu de seus devaneios e pensou, olhando Martogh.
- Sim, é isso. Está tudo acabado agora, triskaj. Fomos derrotados, mas o senhor e seu Império Maithen destruíram o poderio de Zonos e agora o tem aqui, preso, em Anuep, na estrela verde Tirênia. E, creio, para o resto da Eternidade.
A transmissão de pensamentos também atingia Liany, que ouvia e compartilhara a conversa de seu irmão. Ela então tomou a palavra.
- Não há realmente meios de destruí-lo, majestade?
- Sinto, Liany. – Martogh prosseguiu telepaticamente em demanedo. – Até agora nada parece afetar o demônio encarnado. Nada no nosso Universo parece atingi-lo definitivamente e temo que ele passará o resto dos tempos preso aqui, constantemente vigiado. Por isso os trouxe à este templo, ignis. Ambos são os únicos que podem guardar a prisão de Zonos. Eternamente, se for o caso.
- Eternamente? Quer dizer, para sempre? – Liany estava assustada.
- Para sempre é tempo demais, rainha. – Martogh então desceu da plataforma e ficou bem a frente dos dois lemânticos. – Mas peço que o vigiem pelos próximos anos, talvez pelo próximo século ou milênio, até que achemos uma forma de destruí-lo. Se escapar, tentará vingar-se, e sabendo que não preza a vida de qualquer um em nosso Universo, acredito que irá tentar exterminar à todos.
- Concordaria com seu pedido, majestade. – Atron olhou para cima, imaginando que um lemântico não viveria mais que duzentos anos. – Porém deveria saber que é impossível. Nossa espécie não tem a longevidade dos maithens.
- Não, não tem. Porém ambos sabem como viemos até o centro da galáxia da Via Láctea. Pelo teletransporte espiritual. Suas almas deixaram seus corpos para trás em Égon e foram teletransportadas por 30.000 anos-luz até aqui, e fixadas em clones.
Liany olhou para o próprio corpo rejuvenecido, clonado, e concordou:
- Sim, sim... Então a ideia é que sempre mudaremos nossos espíritos para clones novos, quando ficarmos velhos, pela Eternidade e além?
Martogh mudou o tom de verde de seu corpo de lesma.
- Esta é uma possibilidade. Ou, quando estiverem morrendo, podem assumir o corpo de outro ser de outra raça, ou até mesmo de um animal superior. Dar-lhe-eis o dom da mudança espiritual para que cumpram a vigilância de Zonos. Eu mesmo poderia vigiá-lo, mas sabem que tenho de voltar ao meu império, tenho de voltar ao meu palácio em Tarínia, e ninguém além de mim pode cuidar adequadamente de meu povo.
Atron confirmou as palavras do triskaj com a cabeça.
- Sim, entendemos. Volte para o seu povo, grande mestre. Nós não temos mais um império ou um povo que nos acolha. Leman, nosso belo planeta capital, nada mais é agora que um planeta morto. Destruído totalmente pelas hordas bárbaras de Zonos.
- Ajoelhem-se e rezem ao Grande Deus e à Grande Deusa.
Assim o fizeram. Foi quando Martogh, o “filho-dos-deuses” como era conhecido entre os seus, concedeu o dom da mudança de corpos aos antigos reis de Leman, na esperança que vigiassem o demônio Zonos até que se descobrisse uma maneira de destruí-lo. Pois ele representava o mal propriamente dito.

sábado, 8 de maio de 2010

A Banda Mais Famosa do Planeta

A Banda Mais Famosa do Planeta

Amanheceu com uma chuva fina e fria, contudo Scott Lorenzo sentia-se tão disposto e cheio de energia como sempre. Conhecia a sorte de John Morelli Braccelli e não seria uma chuvinha qualquer que atrapalharia mais um show da banda mais famosa do planeta.

- Ajudem-me aqui com esses amplificadores. – Lorenzo era especialista em P.A., coordenava toda a parafernália de áudio da banda, dos amplificadores Marantz ultra-pontentes aos mixers Galaxy que ficavam na “ponte de comando”, o pequeno estúdio que controlava toda a parte sonora e visual durante os shows.

Os operários, trinta ao todo, posicionavam caixas, colocavam microfones e pedestais, pedais para as guitarras e o baixo, conectavam plugs e puxavam a enorme fiação no gigantesco palco em São Paulo, no estádio do Morumbi. O pessoal da iluminação colocava as luzes enquanto a equipe de efeitos visuais testava os telões 3D, os jatos de vapos de gelo seco e os lasers. Várias explosões estavam preparadas, principalmente quando a banda principal tocasse uma música do AC/DC, “For Those About The Rock (We Salute You)”.

Os portões começaram a ser abertos por volta das 10:00, embora o show só começasse com as bandas de abertura às 17:00. Mesmo assim, os telões já começavam a exibir shows antigos e clips das bandas que iam se apresentar, até mesmo da principal, marcada para começar às 21:00.

O gramado foi sendo tomado às pressas e as tietes mais afoitas posicionaram-se grudadas na frente do palco que continha uma passarela na parte de baixo. Tribos de todas as idades sentavam-se nas arquibancadas, cerveja era vendida aos litros, cheiro de haxixe rondando o ar.

Scott Lorenzo almoçou rapidamente por volta das 13:30 e admirou-se ao ver o estádio totalmente lotado, com o pessoal cantando junto as músicas que apareciam em videoclips nos telões gigantescos de alta definição e com imagens 3D. Sua equipe já parava para um descanso. A primeira banda a abrir o megashow, a curitibana Os Catalépticos, já passava o som. O tempo começava a abrir e Lorenzo sorriu sabendo que faria uma noite deliciosa para a apresentação do Única.

17:00 em ponto e fogos anunciavam, ao cair da tarde, o início do que prometia ser um espetáculo fantástico e inesquecível. A adolescente feinha abraçava o pai tiozão que não parava de olhar a bunda da amiga gostosa da filha. O punk radical que odiava a banda principal confraternizava com o nerd que sabia todas as músicas de cor. A fã incurável abraçava o poster de John Braccelli já preparada para ficar nua na hora que ele passasse cantando pela passarela abaixo do palco. A romântica fanática abraçava o namorado desmiolado imaginando que quando casassem ele seria como John, rico e famoso.

Os Catalépticos começou a cantar “River of Blood” mas foi recebido com certa frieza pelo público. Mas eles melhoraram a partir de “One More Tattoo” e finalizaram o show às 18:30, no bis, com “Freaks”. Vlad, Gus e Cox foram muito aplaudidos e saíram satisfeitos do palco.
Às 19:00 entrou o AMP, banda de rock de Recife, arrasando com “Ensurdecedor”, que começou com explosões ao entardecer em São Paulo. Capivara pulava no palco com sua guitarra, dividindo os vocais com Djalma, em uma loucura que levou o público ao delírio. “Devil’s Prize” não ficou atrás, e o show continuou em um frenesi que parecia levar a multidão ao orgasmo. Saíram do palco após “Last Try”, e Scott Lorenzo, fazendo os últimos preparativos para a entrada do Única, sorriu sabendo que eles não eram nada perto da maior banda do planeta, mas tocaram bem. O público pediu bis e finalizaram o concerto com “Ataque dos Aliens”.

Chegava a hora do Única entrar. O público ficava cada vez mais agitado, a ansiedade crescendo, eles cantando músicas da banda após os telões silenciarem. O nervosismo tomou conta de Lorenzo, correndo como louco para a banda não atrasar. Os lasers não estavam sincronizados e o canal do baixo estava falhando. O computador de efeitos visuais foi reprogramado e o cabo do baixo foi trocado às pressas, e exatamente às 21:05 o Única estava à beira do palco, na escada, apenas aguardando a entrada triunfal.

Tudo ficou quieto. Até o público calou-se, a expectativa era imensa. Silvia engoliu seco pulando agitada, Mário tremia de emoção, Jonas encoxou mais a namorada e Lilian tirou a franja dos olhos para ver melhor. Márcio caiu no gramado totalmente bêbado.

A conhecida imagem de um rosto estilizado surgiu em 3D, no meio do palco, projetada na cor verde em meio a densa fumaça de gelo seco. As mesmas palavras de sempre, que a vida vale a pena ser vivida e que todos deviam fazer amor o tempo todo, ditas com a voz grossa sintetizada de um apresentador famoso. Depois uma enorme explosão. Fogos iluminaram a noite de São Paulo e o êxtase da pláteia deu lugar ao Única: o performático John Braccelli nos vocais, com seus cabelos loiros curtos e espetados e seus olhos verdes enigmáticos, Gilberto Loredo como guitar leader, cabelos negros encaracolados e olhos castanhos nada comuns, Sthephanie Bragança Braccelli, a mulher vocalista e guitarrista de John, uma loira exuberante de cabelos escorridos até a cintura, olhos azuis impossíveis, roupas colantes e guitarra cor-de-rosa, a japoneza Tonya Suziaki nos baixos, sempre com sua mini-saia branca e seu instrumento branco com o símbolo japonês da paz em preto, o filho do famoso Tom “Bum” Bunker como baterista, Tom “Bunker” jr., cabelos pintados de azuis até os ombros e porte atlético, usando camiseta de renda preta; a deusa dos blues que entrara este ano no Única, no piano, teclados e vocais, a belíssima negra Suzette Dempsey; nos teclados e sax nada menos que o famoso chinês Lee Chang e seu bigodinho mágico, e finalizando a polêmica morena de olhos cinzas na percussão, que por muito tempo apresentara-se totalmente calva, Anna Catsmann.

Começaram de forma arrebatadora, a bateria de Tom jr. compassada com o baixo de Tonya e o piano ritmico de Suzette, na deliciosa “Tonight is the only Night”, onde John começou cantando rápido entoando o refrão “You‘re my girl forever, but only tonight”, e o público cantava junto berrando, algumas se descabelando, outras chorando e pulando, histéricas, os rapazes invejando John que se requebrava sensualmente no palco, com sua camiseta branca com estampa do símbolo da banda, o leão alado, e a calça de couro colada ao corpo exibindo uma mala considerável.

Emendou “Sweet Little Rock and Roller” com o sax de Lee e os riffs inalcansáveis de Gilberto em sua “Helena”, a famosíssima guitarra Fender Stratocaster negra com detalhes cromados. O final foi sensacional e Tom jogou as baquetes pelas costas enquanto o público berrava alucinado. John gritou um “thanks” e mandou beijos.

Com o público berrando “Única, Única!”, o ritmo diminuiu com o blues “Roadhouse In My Heart”, fazendo Suzette esmerilhar no piano em cima da voz às vezes grave às vezes aguda do sensacional John Braccelli, que logo cedeu a vez à um solo de guitarra bem blues de Sthephanie, que molhava a plalheta na língua de modo muito sensual. Mau o público aplaudiu, entusiasmado, o final da música, John berrou um breve “Obrrigadu, thanks, muchas gracias” e começou a pop rock “Is There Something You Should Know”, na batida eletrônica e nas peripécias tecladistas de Lee, no piano elétrico assumido por Suzette, no baixo bem tocado de Tonya e Sthephanie fazendo com Anna o backing vocals. John dando pulos e andando por todo palco emendou “Hungry Like a Bear”, com o solo do baixo de Tonya fazendo o público aplaudir junto pulando sem parar, e finalizou a sequência com “Boys on Film”, o hino gay que de modo esperto John cantava já sem a camiseta, mostrando os músculos bem definidos e a barriga tanquinho. A platéia berrava o refrão de modo enlouquecido e a música acabou entre fogos e explosões.

Uma voz sintetizada disse “Única” bem lentamente enquanto o nome da banda aparecia nos telões, e os lasers verde-azulados entre o gelo seco tornaram a atmosfera densa. John surgiu vestido com outra camiseta, desta vez toda vermelha, e calça jeans bem velha. Sthephanie veio com seu violão de estrelas e uma mini-saia brilhante, Gilberto, todo de terno e gravata, de volta com a “Helena” e o resto da banda com outras roupas exceto Tonya, que não mudava o visual branco. Iniciaram a linda e suave “Save a Little Prayer For My Soul”, com o compasso lento de Suzette ao piano acústico emoldurando a voz de John doce e serena. Traduzindo:

“Reze ao entardecer, reze ao amanhecer, reze uma pequena prece por minha alma, pois agora eu estou perdido, perdido entre incertezas, perdido entre drogas, perdido para sempre, mas eu ainda te amo, e não sei o que fazer”

As garotas, mulheres, garotos e homens choravam balançando seus isqueiros piscantes, rapazes pegavam-se cantando o refrão a pleno pulmões, o velho roqueiro bebendo mais uma cerveja, a garota quase desmaiando. Ao final a histeria era enorme. John logo começou outra romântica, “Where Are We Now?”, e em certo momento a banda parou de tocar e ele cantou sem apoio, com todos na platéia cantando com ele, e foi quando apenas regeu e cada um cantava com alegria no coração, lágrima nos olhos e sentindo que nada mais havia no mundo além daquele estádio, e nada mais importava além de estar ali com amigos cantando canções que te levavam ao prazer de um modo único.

Aplaudiram. Aplaudiam e gritavam e John soltou um “Thank You, Obrigaaaaduuu Brazil!”. E esperou o público recuperar-se e acalmar-se.

Então de costas para a platéia gritou “One, Two...” e a banda começou “Modern Times” e ele “I Want to believe in love” no refrão, e finalizando a música entre berros “Let's live there is to live!”. Sensacional. Antes do público acalmar começou “House” cantando “First it was vertigo, like any passion...” deixando Gilberto fazer um longo solo de guitarra, e houve desmaios na platéia com seus riffs arrasadores. John cantava “Light on, waiting at the gate...” e o show seguia em uma alegria e gritaria geral, todos cantavam junto e conheciam todas as músicas, de albúns fantásticos como “The Golden Shower” ou “A Little Beat from My Heart”.

O ápice estava chegando. Iniciando apenas com o baixo de Tonya, “Totally Numb” arrasou, mulheres se despiam, homens gritavam, desmaios e histerismo tomava conta do Morumbi. “Crawling Sensation” deixou todos possuídos, e cada vez que o refrão chegava, John deixava o público cantar. Todos estavam em uma união onde não havia brigas, ódio, preconceito, somente a música. Não havia religião, raça ou nação, eram apenas homens e mulheres cantando o amor, a vida, a paixão, o que fosse, mas todos estavam se sentindo como se algo realmente valesse a pena. John os fazia sentir assim.

Mais para o fim do show, a sexual “Pistol Of Love” terminou com John fingindo um orgasmo e molhando a platéia próxima com borrifos de água, ótimo refresco no terrível verão brasileiro. A histeria era completa. Uma garota conseguiu subir ao palco e agarrar John, tentando beijá-lo e sendo levada por seguranças enormes, esperneando.

Sthephanie brincou ao microfone, em português bem brasileiro pois era a sua nacionalidade:
- Parem de agarrar meu marido senão jogo minha guitarra em vocês, suas malucas! – E tirou vários acordes de sua Gibson cor-de-rosa. Começou então a cantar “Big Girls Don’t Cry” fazendo um cover da Fergie, e as garotas a acompanharam no refrão. John ria e pegava calcinhas jogadas no palco à la Wando, jogando-as de volta.

Quando Sthephanie finalizou e foi aplaudida com veêmencia, John aplaudiu também e depois foi até ela e a beijou na boca, tirando vaias das mulheres e aplausos dos homens.
- All right, fellows. All right. I’m very happy to see Morumbi totally full tonight. Thanks for coming! – John pulava como se estivesse sendo atacado por pulgas. Desceu a passarela embaixo do palco, próximo ao povo que tomava o lugar, e levou todos à loucura.

Começou a explosiva “Highway Eternal” e no refrão quase se jogava ao público: “Nobody will ever reach me”, e então veio o solo de teclado de Lee, seguido do duelo fantástico de guitarras de Sthephanie com Gilberto. Uma parada e Tom jr. mostrou que herdara do pai o talento na bateria. A música deu uma acalmada e o público batia palmas acompanhando o bumbo de Tom, depois o baixo de Tonya, mais tarde Anna nos atabaques, tamboretes e bongôs, e um solo quase blues de Gilberto que foi em um crescendo até virar um rock sincopado, quando Sthephanie entrou gemendo com sua Gibson. Subitamente o ritmo novamente diminuiu e entrou o piano acústico conduzido por miss Suzette e em seguida a voz arrasadora e aveludada de John, que parecia falar direto ao coração das garotas que caiam uma a uma, e até os garotos engoliam seco. Aumentou a velocidade da música até o refrão, e tudo foi crescendo, as exibições performáticas, as explosões e os lasers até um final apoteótico da música executada com vários improvisos em deliciosos quinze minutos. Todos gritavam, aplaudiam, berravam, alucinavam.

A banda então despediu-se rapidamente e sumiu e o palco ficou escuro. Hora de comprar cerveja, fumar o que desse, relaxar, comentar o show, namorar. Mas logo estavam todos gritando “Parou porque, porque parou?” ou “Única, Única!” ou ainda “John, John, John!”. Os berros foram ficando cada vez maiores.

No backstage, John foi dar uma mijadinha, Sthephanie e as mulheres retocar a maquiagem e trocar de roupa, Gilberto beber um pouco de tequila, Tom arrancar um beijo de Anna. Verificaram o set list e combinaram de alterar a última música do bis.

A cartase foi geral quando John surgiu sozinho e ficou olhando sorrindo para a platéia. Falou sereno: - For Those About The Rock, We Salute You. – E a gritaria foi ensurdecedora. E todos da banda entraram e executaram o som do AC/DC, que atordoava com arranjos de piano elétrico e teclado, duas guitarras e percussão. Ao final John pulava como louco: “Shout!” e um canhão laser emitia um pulso ao céu da noite estrelada e ao mesmo tempo fogos explodiam em várias cores, deixando todos boquiabertos. “Shout!” e novamente o Morumbi estremecia. “Shouuuutttt!” e John ficou apoplético de tanto gritar no final estonteante da música, e o estádio parecia vir abaixo!

A reação atordoante da platéia não foi pouco, mas John não perdoou e mandou “Sweet Child O’Mine” do Guns com Sthephanie como guitarrista solo e Gilberto pegando sua guitarra cinza e fazendo a ritmica. E para surpresa de todos, foi a própria Sthephanie que começou cantando. Cantava acompanhada da voz do público com sua guitarra cor-de-rosa, e John pulava como a um doido de um canto a outro do palco, e depois provocando as tietes andava rebolando pela passarela. Arrancou beijos de língua de fãs e uma maluca apareceu totalmente nua na passarela, levada se debatendo pelos seguranças guarda-roupa.

Depois do solo de guitarra, John e sua mulher cantaram juntos até o final agraciados com berros histéricos e aplausos mil.

- Thank you, people, thank you so much!
- Obrigada! Obrigada, galera!

E John preparou a última da noite inesquecível.

Só ficaram ele e Sthephanie no palco. Ambos sentaram-se em banquinhos e pegaram violões. E começaram a cantar sincronizados sorrindo um ao outro. O público não se conteve. A música escolhida foi o sucesso máximo da banda, que parara de cantá-la porque o público entrava em um estado de histeria máxima e chegara a invadir o palco em vários shows anteriores. Mas eles decidiram mesmo assim cantar “There is One Angel for Every One”

Todos cantaram juntos. Cada um, seja o vendedor de cerveja, os seguranças, o guardinha ajudante de palco, todos cantaram cada sílaba de cada estrofe da música perfeita, onde cada palavra tinha o sentido do todo e toda a melodia fazia cada um ali presente sentir-se especial, sentir-se protegido, e todos percebiam a presença avassaladora de alguém único, um Todo Poderoso para quem a música servia de comunicação.

O final foi... Não existem adjetivos para qualificá-lo. Mas todos, todos mesmo, choravam e se abraçavam, e a banda fazia reverências debaixo de uma chuva de fogos enquanto a gritaria e os aplausos eram ensurdecedores.

Foi o maior show da banda mais famosa do planeta.