Kyra e o Fim do Mundo
Nome do autor: Vitor Hugo Brandini Ribeiro
e-mail: vitorr@splicenet.com.br
Zé
do Caixote, Zelão para os conhecidos, observou o objeto por um longo tempo,
coçando a cabeça.
- Nunca vi isso, não, menino. Parece de pedra,
mas é muito leve!
Chiquinho
dava risada exibindo os buracos entre os dentes tortos.
-
Então, achei lá no fundo do açude que secô. Tava meio que enterrado na lama.
Num sei o qui é, ninguém sabe lá em casa, mas achei que o sinhô podia dar uma
zoiada e dar umas pilas por isso aí.
Zelão
esfregou o queixo barbudo.
- Tá
Bão. Posso vendê depois pros turista. Te dô 5 pau, certo, moleque?
-
Bom demais, sinhô Zelão. Bom demais.
Zé
do Caixote pagou o rapazinho e alisou o objeto inusitado entre suas mãos, um
cubo branco que parecia feito de mármore, porém extremamente leve. Colocou um
preço e deixo-o na vitrine da vendinha.
Desde
2.060 o pequeno vilarejo fora quase todo coberto pelo aumento das Dunas de
Genipabu, que haviam transformado aquela parte do Nordeste Brasileiro em um
deserto semelhante ao Saara. Contudo, muita gente ainda vivia ali, tirando seu
sustento de turistas eventuais.
As
antigas pousadas e hotéis luxuosos, agora decadentes ou fechados, estavam
cobertos por toneladas de areia. As poucas casas e a igrejinha emergiam das
dunas de forma singular.
Uma
mulher esguia, ruiva com olhos verde-jade, sardas e lábios carnudos, surgiu
andando devagar pelo caminho de areia que levava as veredas do povoado.
Crianças a rodearam tentando vender artesanato ou pedindo esmola, enquanto
adultos olhavam-na de janelas, perplexos.
Gentilmente
Kyra recusou as ofertas dos garotos e distribuiu moedas à eles, livrando-se
rapidamente da pequena turba e adentrando o vilarejo. Vestia uma camiseta
branca suja de terra e uma bermuda cáqui, ladeada de estranhas pochetes,
chamando a atenção dos transeuntes. De umas das pochetes sacou um celular
estranho e brilhante e ficou de olhos
vidrados no que dizia seu visor.
Raimundo
mascava um chiclete encostado na porta de um bar, observando a cena. “Aquela
turista otária parece que tem um celular bem caro. Nunca vi um tão brilhante! E
que gatinha... E tá sozinha...” – Seus pensamentos o fizeram segui-la até a
lojinha do Zelão.
Kyra
entrou sorrindo, sorriso retribuído por Zé do Caixote, que arrumou os poucos
cabelos com as mãos suadas.
- Em
que posso ajudar?
A
ruiva correu os olhos pela vitrine e logo apontou.
-
Quanto quer por este cubo branco?
-
Ah, esse é feito de uma pedra que só tem por aqui. Vale cem, mas faço por
cinquentinha para a senhora.
Kyra
sacou de sua outra pochete algo parecido à um smartphone, leu o que aparecia em
sua pequena tela, enfiou a mão de novo na pochete tirando uma nota de cinquenta
novíssima.
Zelão
aceitou e embrulhou o cubo, entregando-o à ruiva, que pegou-o com muito
cuidado. Agradeceu e saiu da lojinha, quando um rapaz chocou-se com ela. Foi
tudo muito rápido: em instantes o sujeito, já experiente em correr sobre a
areia, saia com uma das pochetes de Kyra e o cubo embrulhado.
-
Pare! Pare, homem! Você não sabe o que faz! – A ruiva controlou-se e na pochete
que lhe restou tirou um pequeno objeto que cabia na palma de sua mão. Apontou
para o homem em fuga e disparou. O fino raio luminoso não atingiu o ladrão, que
sumiu dentro de um hotel abandonado.
Raimundo
sabia fugir com destreza. Entrara no terceiro andar do velho “Coqueiral”, cujo
térreo e os dois primeiros andares sumiram debaixo das dunas. Os corredores
agora escuros eram ladeados por portas de suítes há muito vazias. O ladrão
chegou às escadas e desceu os lances com muita rapidez, ofegante, mas contente.
Finalmente
chegou ao seu lar. Um quarto no primeiro andar, escuro e sombrio. Trancou a
porta após acender as velas e foi conferir o que roubara.
Abriu
a pochete e tirou o aparelho que Kyra usava ao chegar. Nunca tinha visto um
celular tão brilhante e bonito.
Curiosamente não tinha teclas, devia ser um dos novos modelos com o qual só se
discava ou se pedia alguma coisa via voz. Alisou-o satisfeito. Depois abriu o
embrulho e pegou o pequeno cubo branco nas mãos. Analisou e achou que devia ser
só um pedaço de plástico, jogando para o lado. Voltou sua atenção novamente
para a pochete. Além do aparelho brilhante, só havia mais um item, por sinal bastante
estranho.
-
Moça, aquele cara que te roubou era o Mundão, ele é perigoso. – Zé do Caixote
ajudava a ruiva a se recompor. Chiquinho apareceu com o coleguinha, Beto.
-
Nossa, moça, que lanterna legal você tem!
-
Chico, era uma arma de raios “laise”. – Beto deu risada do amigo.
Kyra
guardou discretamente o pequeno dispositivo na pochete que lhe restara e
arrumou os cabelos atrás das orelhas.
-
Está tudo bem. Garotos, que tal um sorvete? Eu pago. – Os garotos deram vivas e
correram pegar picolés na geladeira da lojinha. Kyra virou-se para Zelão.
-
Senhor, não se preocupe, sei me cuidar. O que o senhor sabe sobre esse rapaz
que me roubou? É muito importante eu recuperar pelo menos o cubo que comprei do
senhor.
-
Olha, moça, o Mundão, o Raimundo, ele é matador. Já matou turista antes. Olha,
o cubo nem vale nada, o Chiquinho ali achou no fundo do açude que secou no mês
passado, eu paguei só 5 pilas para ele. É melhor não se meter com alguém da
laia do Mundão, dona. Eu até devolvo seu dinheiro.
Kyra
sorriu para o sujeito de meia-idade e colocou a mão em seu rosto.
-
Obrigada, bom homem. Mas eu sei me cuidar, e além do mais, aquele cubo é muito
importante. O senhor não entenderia, porém posso lhe afirmar que o cubo branco é
a nossa única salvação do que está por vir.
Zelão
arrepiou-se. Do que a gringa estava falando? E ela tinha um sotaque tão
estranho... Era alemã? Americana? Francesa? E aquela lanterna, era uma lanterna
mesmo ou era uma arma de raios? Arma de raios? Que loucura!
-
Dona, o que está por vir? Do que que a senhora tá falando?
Kyra
não respondeu de imediato. Apenas fitou o velho hotel no fim da rua de areia,
aos pedaços, com as janelas dos quartos quebradas e as paredes cheias de
rachaduras, inclinado para a direita, parecendo que ruiria a qualquer momento.
Suspirou lentamente.
-
Senhor, preciso recuperar o cubo. O senhor lê a Biblia?
-
Bom... Bom, de vez em quando eu leio sim... – Zelão era católico, mas não lia a
Bíblia.
-
Senhor, já leu sobre o Apocalipse? A Revelação? Pois aquele cubo branco servirá
para impedir o Juízo Final, impedirá que o mundo termine em fogo! Por isso eu
preciso tê-lo de volta!
Zé
do Caixote engoliu seco. Quem era aquela maluca?
Kyra
encarou Zelão. Esperava provocar o medo nele para que a ajudasse a recuperar o
cubo, invocando o mito bíblico do Apocalipse, o que no fundo não deixava de ser
verdade: sem o cubo seria o fim do mundo para todos os seres vivos.
- Tá
bem, dona. Olha, o Raimundo se esconde no velho hotel “Coqueiral”, aquele mesmo
que a senhora viu ele entrar. Ali agora é um antro onde só tem drogado e
ladrão. A polícia daqui é só o delegado, o Mané, e o soldado, o Tico, e eles
não entram ali nem a pau. Eu também não chego perto, mas se a senhora qué
arriscá, vai com cuidado mesmo. A senhora tem uma arma de raio aí, então...
Kyra
lhe sorriu mais uma vez, pagou os sorvetes dos meninos e seguiu pela rua de
areia até o velho hotel. Caminhou decidida por entre as casas semi-enterradas
enquanto tirava sua arma de dentro da pochete novamente.
Raimundo
esfregou entre os dedos o pequeno objeto triangular de metal dourado, que
tirara da pochete roubada de Kyra, e para seu assombro um raio luminoso surgiu
e formou uma figura humana à sua frente. Ele deu um berro largando o objeto,
mas ouviu estarrecido o bom senhor de longa cabeleira e barbas brancas que
surgiu à sua frente, falando-lhe com voz bondoso e macia.
Kyra
entrou no prédio. Pressionando um pequeno botão em sua arma, um jato de luz
saiu dela servindo-lhe de lanterna. Andou lentamente explorando o lugar mal
cheiroso entre pilhas de entulho. Aprumou os ouvidos mas só ouvia o som de sua
própria respiração acelerada.
Se
ao menos estivesse com seu sensor portátil, pensou, poderia achar o cubo com
facilidade. O aparelho que parecia um celular na verdade indicava sua posição
exata. Foi assim que o encontrara ali, naquele vilarejo entre dunas.
Chegou
às escadas. Subiria ou desceria? Pensou: se eu fosse uma ladra, onde me
esconderia? Embaixo, creio. E desceu devagar. Acertara: ouviu vozes na
escuridão. Então avançou iluminando o corredor arruinado.
Observou
luzes no rodapé de uma porta. Apagou a lanterna da arma e aproximou-se devagar,
a respiração rápida como seu coração.
Chutou
a porta e entrou. O golpe que levou foi violento, e derrubou a arma. Caiu
atordoada no chão do corredor e o sangue tomava-lhe a face.
-
Garota burra. Não devia ter vindo aqui. Eu não queria ter de matar você.
Kyra
tirou os cabelos do rosto e limpou o sangue da testa com a palma de sua mão. A
cabeça doía. Encostou-se na parede, sentada no corredor. Procurou a arma, mas
não a via entre a sujeira e o entulho.
Raimundo
estava com um pé-de-cabra em uma mão, que usara para golpeá-la de leve. Podia
tê-la matado no primeiro golpe, mas não o fez.
Ele
era iluminado por trás por velas tremulantes, o que lhe dava um aspecto
fantasmagórico. Mas não se moveu enquanto Kyra subia com as costas raspando na
parede até ficar de pé.
-
Devolva-me o cubo branco que eu vou embora. Eu lhe dou todo o dinheiro que
tenho. Eu só quero o cubo.
Raimundo
deu risada. Uma risada banhada de medo.
-
Olha, gata, eu ouvi o velho da visão, que saiu da luz do negócio dourado
triangular. Se eu te der o cubo, o mundo...
- O
mundo vai acabar se não me entregar. Eu arrumo dinheiro, lhe dou o que quiser,
mas dê-me o cubo!
Raimundo
afastou-se, voltando para dentro do quarto do velho hotel. Segurou firme o
pé-de-cabra com as duas mãos, suando frio e com medo, muito medo.
Kyra
o encarou e avançou. Chegou perto dele.
-
Pare, gata. Pare, eu não quero...
-
Não pode me matar. Se me matar o mundo acaba hoje. Se você ouviu o velho, sabe
disso. – Seu olhar era firme. Raimundo engolia seco sem parar e tremia
segurando com as mãos suadas o pesado pé-de-cabra, tentando mantê-lo em uma posição
ameaçadora.
Ele
nunca vira uma imagem surgir no ar, mas o homem com jeito de Deus lhe falou
como em uma visão, e se ele falou a verdade...
- O
velho... O velho na visão. Era Deus? Se era Deus ou não, acontece que ele disse
que você...
-
Raimundo... Raimundo é o seu nome, não é? O cubo branco é a peça que falta para
eu salvar o mundo. O que o velho lhe disse não é de todo verdade. Eu posso e
vou salvar a Terra do que está por vir. Mas preciso do cubo!
-
Gata, escuta. O velho falou que você quer nos possuir. Eu acho que você é o
demônio! O homem na luz falou que você é muito poderosa e veio de outro mundo
para nos possuir! Ele falou!
-
Mas ele também lhe contou sobre o fim do mundo, não contou?
-
Contou. E contou o que é preciso fazer para que o mundo não acabe. Mas ele
disse que você é má e quer ter todos nós servindo você e o seu povo
estrangeiro.
Kyra
tirou a camiseta e com os seios à mostra arrumou os cabelos ruivos.
-
Sou sua, meu amor. Basta que me entregue o cubo e eu farei coisas que nunca
imaginou fazer com uma mulher.
-
Não! Não! O homem da luz me alertou sobre você, mas eu não quero matar você.
Dizem que eu matei turistas, mas não é verdade, eu nunca matei ninguém. Fica
longe de mim! Eu sempre li muito, estudei sobre planetas e estrelas, eu sei, eu
entendi o homem da visão!
- Eu
quero o cubo! – Kyra avançou sobre ele com uma rapidez incrível e tomou-lhe o
pé-de-cabra demonstrando uma força sobrenatural, derrubando-o e depois tentando
golpeá-lo com o instrumento de ferro. Raimundo escapou dos golpes jogando-se
entre a sujeira e o entulho, virou o corpo várias vezes até encontrar um monte
de areia, que pegou e jogou nos olhos da ruiva.
Escapou
para o corredor mas tropeçou em uma viga caída, em meio a escuridão. Kyra
surgiu por trás e sorriu de forma sádica.
-
Adeus, humano idiota! – E baixou com toda a força o pé-de-cabra sobre a cabeça
de Raimundo.
Zelão
imaginava o que tinha acontecido à moça bonita. Mundão devia tê-la estuprado e
matado, o rapaz não valia um níquel. Conformou-se, afinal a polícia ali não
faria nada a respeito, ninguém faria nada. Pobre moça.
Olhou
para o céu. Estava estranho. Faixas amarelas e vermelhas aproximavam-se com
rapidez tomando-lhe o azul tradicional. Zelão engoliu seco. Seria o fim do
mundo como falou a moça?
Baixou
os olhos e não pode crer no que via.
Raimundo
estava ajoelhado no meio da rua. Suas mãos estendidas seguravam o cubo branco
em direção ao céu. Ele gritava palavras estranhas.
Uma
luz verde saiu do cubo em direção ao céu. As faixas amarelas e vermelhas
sumiram.
Raimundo
gritou de alegria. Colocou-se de pé limpando a areia dos joelhos. Dava
gargalhadas quando viu Zé do Caixote. Jogou-lhe o pequeno triângulo dourado de
metal.
-
Zelão, eu achei a arma de raios dela no chão, quando ela ia me matar e a matei
antes! – E deu risadas como um louco. – E eu salvei o mundo, Zelão! Eu salvei o
mundo!
E
saiu gritando pelo vilarejo bradando o cubo branco.
Zelão
apertou o triângulo dourado, entre curioso e intrigado. Uma luz saiu dele e a
imagem de um homem formou-se em plena rua, para todos verem. O velho repetiu as
mesmas palavras que havia dito à Raimundo.
- O
Sistema Solar irá cruzar com uma nebulosa em sua órbita pela galáxia e a vida
na Terra irá se extinguir. O cubo branco pode gerar um escudo que protegerá
todo o planeta durante a passagem pela nebulosa. Mas cuidado com uma
civilização alienígena que quer escravizar os homens. Eles salvarão a Terra mas
usarão a tecnologia do cubo, deixada pelos Antigos, para dominar todos os
humanos. A alienígena que virá à Terra estará na forma de uma bela mulher
ruiva. Para ativar os escudos no cubo faça o seguinte...
E
foi assim que Raimundo salvou o mundo.
Conto muito bom, do jeito que gosto, bem cheio de fantasia fictícia. O seu modo de escrever é bem casual, muito legal, parabéns amigo, Vitor!
ResponderExcluirEstarei sempre por aqui, abração!
Valeu, Obrigado!!
ExcluirPuxa!!! Muito bom o seu conto!!! Misterioso... Vc tem a SCI-FI na vêia!!! Eu sou vidrado nesse tipo de tema... Seja livros, filmes, gibis... Parabéns e sucesso!!!
ResponderExcluirObrigado!!!
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