Capítulo 3:
A parte que me interessava mais na faculdade era tudo que tinha a ver com computadores: programação, algoritmos, projetos. Detestava e ainda detesto matemática, cálculo, geometria e estatística. As minhas primeiras provas nestas últimas matérias eram tingidas de vermelho. Porém começava a me destacar entre os colegas no domínio dos novíssimos Cobra-320 e Cobra-520, os computadores do CPD da minha faculdade.
Eu aprendi com extrema rapidez a programar em Cobol, Mumps e a mexer no sistema operacional SOD tão bem que minhas notas eram 9,0 ou 10,0 nestas matérias.
E o semestre voava. Voltando à minha turma, logo fiz amizade com o Otelo, um grande amigo da Bolívia. E o Márcio, o sujeito que eu admirava porque parecia saber de tudo um pouco. Também era o nosso fornecedor de disquetes, programas “alternativos” para Apple II e picotex para furar disquetes de 5 ¼” e poder usar o outro lado.
Logo o trio estava sempre junto. Infelizmente não havia vaga na república do Márcio e o Otelo morava em Jundiaí, uma cidade próxima à Campinas, então tive de me contentar em viver em uma quitinete com mais dois desconhecidos que sequer faziam o mesmo curso que eu.
Lembro-me do primeiro dia na minha república. Claro como se fosse ontem. Cheguei às onze e meia da noite de uma sexta-feira, vindo da faculdade com o ônibus vermelho da C.C.T.C. e estava exausto. Aulas de Álgebra I e Cálculo I haviam reduzido meu cérebro a um amontoado de sinapses sem sentido.
A porta estava trancada. Eu tremia. Não conhecia meus dois novos companheiros porque todo o trâmite de alugar o apartamento fora feito por minha mãe. Eu só sabia o endereço que estava em um pedaço de papel e mais nada, então imaginem o que eu sentia naquela hora...
Abri a porta com minha chave e acendi a luz. Era uma quitinete cinza e comum no sétimo andar de um prédio na Barão de Itapura. Na pequena sala havia apenas um pequeno sofá verde escuro, um rack velho com uma televisão pequena e um aparelho de som antigo. O chão tinha um carpete cinza tipo forração.
Havia apenas mais uma cozinha minúscula, um banheiro apertado e um quarto um pouco maior com dois beliches e um guarda-roupa estreito. Senti-me deprimido... Eu teria de viver lá por pelo menos mais quatro longos anos. Joguei a mochila com minhas coisas em uma das duas camas vazias.
Tomei um banho rápido, coloquei meus ridículos pijamas e arrumei a cama que escolhera (as outras duas, de meus colegas de quarto, estavam todas bagunçadas). Era a parte de baixo do beliche da esquerda. Deitei e não conseguia dormir, agitado, com uma espécie de medo, sentindo-me sozinho. Porém em algum momento após a uma da manhã peguei no sono, um sono leve.
Acordei com risos. Ia levantar-me para conhecer meus dois novos colegas, mas ao virar-me na cama deparei-me com um casal bêbado.
O rapaz, um jovem alto, mulato e de cabelo pixaim cortado rente, reconheci como sendo um dos que iam compartilhar a república comigo. Eu o havia visto em uma foto e sabia que seu nome era Natanael. A garota, uma loirinha muito bonita e magricela, eu nunca tinha visto antes. Seus olhos verdes não demonstravam brilho algum.
Ela era bem pequena perto dele, que devia ter quase dois metros de altura.
- Quem é você, garoto? Eu te conheço? – Natanael parecia irritado.
- Eu sou o Flávio Maulson. De Salto. Você deve ter falado com a minha mãe.
- Ah, é... O Flávio. Sua mãe mandou ficar de olho em você! Já trocou as fraldas?
Eles riram e eu fiquei muito chateado, mas não respondi. A loira me encarou:
- Olha... Porque você não vai ali na esquina chupar um sorvete que eu estou querendo chupar outra coisa aqui... – E riram mais.
Levantei-me para colocar uma roupa e sair. Estava ficando insuportável permanecer naquele quarto. Quando me viram de pijama bege caíram na gargalhada.
Natanael chegou a chorar de tanto rir:
- Que é isso? Aqui não é o maternal não....
Peguei algumas roupas e me retirei, indo vestir-me no banheiro. Saí do apartamento humilhado e com muita raiva e desci para a rua, caminhando até uma agitada pizzaria ainda aberta ali perto. Nem lembro o que comi ou bebi de tanta raiva.
Voltei quanto a pizzaria fechou, duas e meia da manhã. O apartamento estava às escuras. Entrei vagarosamente no quarto e percebi, pela penumbra, que Natanael e sua namorada estavam dormindo no beliche da direita, na parte de baixo, juntos.
Tirei meus sapatos e dormi de jeans e camiseta mesmo, roendo-me de ódio.
Na manhã seguinte, um sábado atipicamente quente do final de abril, voltei para Salto, para minha casa. Um noite na república e já a detestava. Cheguei de mau humor e fui diretamente ao meu quarto, que compartilhava com meu irmão.
Coloquei meus fones de ouvido e fiquei ouvindo música, eu gostava de “mixar” fitas cassetes com músicas New Wave de bandas como Devo e B-52’s, minhas preferidas na época. Eu não tinha uma moto ou um carro, mas tinha uma senhora aparelhagem de som, com toca-discos, mixer, equalizador, os cambal.
Tirei os fones quando meu irmão, Fúlvio, tocou o meu ombro.
- Vem almoçar, Fla, que a mamãe tá chamando.
Desliguei tudo e fui comer, meio chateado, ainda lembrando da noite anterior. Eu não queria mais voltar para a minha república. Mas não tinha coragem de dizer isso aos meus pais. Sentei-me na mesa e minha mãe serviu macarrão com almôndegas.
- Como foi na república nova, Flávio? – Ela perguntou.
- Ah, foi bom – menti – dormi bem, foi legal.
Ela não perguntou mais nada e fiquei quieto. Meu irmão começou a reclamar da comida como sempre fazia. Minha mãe gritou para o meu pai:
- Jonas, vai almoçar aí ou vem comer aqui?
- Vou comer aqui na sala, beinhê. Vai começar um filmão com o Browson.
Tudo aquilo me deixava deprimido. Meu irmão reclamando, meu pai ausente, minha mãe pouco importando se eu ia bem na faculdade ou não, porque nem sequer sabia que notas eu tirava ou se havia alguma prova importante.
Comi bastante como um rapaz de vinte anos come e voltei à minha música. Afundei na poltrona com os fones de ouvido e coloquei no meu tape deck Foreigner cantando I Wanna Know What Love Is, curtindo uma leve depressão. Suspirei pensando na Solange. A linda, extrovertida e inteligente Solange Pereira de Carvalho.
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