Capítulo 4:
Mesmo tendo vinte anos e alguns amigos, eu não saia de sábado. Não tinha carro, não tinha moto, não tinha papo, não tinha vontade. Colocava em alguma estação de FM e ficava gravando músicas em fita cassete e me imaginando em alguma danceteria dançando – coisa que eu não sabia – com Solange. Namorando a Solange.
Aquele domingo passou rápido com a visita costumeira da minha tia e a tarde eu sempre saía para jogar fliperama, uma das poucas coisas que sabia fazer bem.
Lembro-me de arrumar uns trocados para comprar uma Playboy e esconder sob a camiseta. Depois quando fui tomar um banho à noite, homenageei a Solange imaginando-a no lugar daquelas modelos das páginas da revista, solitariamente me satisfazendo, na primeira vez que ousei imaginar algo mais quente com ela.
Na aula de Álgebra I, com a professora “Crocodilo”, plena quinta-feira, lá estava ela. Concentrada, mordendo a ponta do lápis... Eu queria ser aquele lápis... Contudo, exceto pela entrada ou saída da aula, ela ignorava minha existência. O Márcio dissera que já a vira com um namorado que a vinha buscar de Voyage azul metálico.
No intervalo das aulas fui comer um X-Salada na lanchonete da faculdade e sentei-me com o Márcio e o Otelo, ambos devorando seus lanches com velocidade.
- E então, amigão. – Márcio falou com a boca suja de maionese. – Já conseguiu pelo menos conversar com ela? Ou ainda está só no “oi”?
- Acho que nem no “oi” – Otelo deu uma risadinha.
Eu apenas devolvi um sorriso sardônico.
- Ah, bom, acho que nem vale a pena. Ela tem um namorado, certo? Que tem um Voyage. Eu nem tênis bom tenho. Então, nem vou perder meu tempo.
- Mas é um tonto mesmo. Vai lá, Flávio. Ela é legal, não vai sair correndo de você. O máximo que ela pode fazer é te dar um pé na bunda.
- Márcio, você tá doidinho para falar com a Márcia Bellini e não tem coragem também, então não fica pressionando. A hora que eu sentir vontade de falar com ela, eu falo, tá?
Otelo deu outra de suas risadinhas em meio a mordidas em seu X-Tudo:
- Vontade você já tem, falta coragem!
Suzana Fontes, a milionária da classe, muito simpática por sinal, alegre e extrovertida - uma amiga para todas as ocasiões - aproximou-se com sua inseparável amiga Kássia, igualmente simpática.
- Então, povo, que tal a gente ir na Stratosfera hoje? Vai tocar um grupo novo lá que eu nunca ouvi falar, de New Wave, mas bem legal, parece que se chamam os Titãs.
- Ah, é – eu conhecia a nova banda – Tem aquela música legal deles, Sonífera Ilha. Eles vão tocar aqui? Que fera. Queria ir sim.
- Eu também – disse Márcio – E o nosso amigo Otelo vai querer também, mas nós vamos ter de ir de Mercedes com motorista.
Kássia ficou supresa: - Mercedes com motorista?
- Ele está falando do buzum da C.C.T.C. que é Mercedes, Kássia. – Disse Suzana, não achando graça na brincadeira. – Olha, eu pego vocês, tá? Vamos juntos.
- Mas eu tenho que ir para Jundiaí, o último ônibus é a meia-noite!
- Dorme na minha república, Otelo. – Márcio já se pôs de pé alisando a barriguinha proeminente. – Pode dormir no sofá que os caras não vão achar ruim. Bom, gente, vou pegar outro X-Tudo que aquele primeiro não deu nem para cova do dente.
No fim da aula daquela noite fui até a minha república, que estava vazia, e coloquei meu melhor jeans e uma camisa azul petróleo com gravata de crochê branca, bem na moda da época. Dos meus amigos de república, eu só havia conhecido o Natanael, o outro cara eu nem sabia quem era e até então não aparecera.
Suzana parou o seu Fiat Prêmio azul escuro novinho em frente ao meu prédio pontualmente às onze horas e Kássia, Márcio e Otelo já estavam nele. Excitado por sair com amigos, não vi a poça d’agua e sujei meu dockside e a barra do meu jeans, mas não me preocupei. Era uma das primeiras vezes que saia com amigos, embora em Salto, quando era pré-adolescente, saía muito à noite. Saia a pé, andar pela 9 de Julho, ver as lojas e ficar conversando bobagens de pré-adolescente.
A danceteria Stratosfera ficava na rua Paula Bueno em Campinas, e era incrível, pelo menos para mim, virgem em sair para lugares assim. Lembro que estava tocando Blitz quando entramos, Mais Uma de Amor. Começamos fingindo que dançávamos, nós cinco. Eu estava muito feliz! Saindo pela primeira vez!
Foi então que outro momento mais que mágico aconteceu. Ela!
Solange Pereira Carvalho. Ela entrou vibrante, vestida com um tubinho preto, glitter no rosto e de mãos dadas com um sujeito gostosão de cabelos espetados.
Meu mundo girou. Como uma menina podia ser tão bonita? Tão sensual?
- Acorda, bananão. – Márcio me sacudiu. – Ela é muito caminhão para sua areia.
- Não seria o contrário? – Otelo deu sua risadinha.
Kássia e Suzana já haviam nos abandonado à própria sorte, cada uma conversando com um rapaz diferente. Agora éramos só os três e fiquei com os olhos vidrados em Solange, que não me vira. Os Titãs em começo de carreira entraram no palco.
Eu pulava de qualquer jeito finjindo que sabia dançar. Meus olhos não conseguiam deixar de acompanhar Solange. Ela dançava muito bem junto com o rapaz, e em um momento fugas ela me viu, porém virou o rosto e fez que eu era um completo estranho. Mesmo no auge do show, quando os Titãs tocaram Sonífera Ilha, eu me sentia um morto-vivo com a auto-estima abaixo da linha do zero.
Voltamos a pé para nossas repúblicas na madrugada fria, abandonados pela Suzana e pela Kássia, que haviam arrumado dois “rapazes interessantes”.
Naqueles idos dos anos 80 do Século Vinte andar à noite por Campinas não era correr risco de ser assaltado ou até morto. Só sei que ao chegar em minha quitinete, encontrei Natanael de péssimo humor.
- Fica bem longe de mim, sua bichinha, porque hoje eu arrebento um se puder! - E socou a parede deixando um desnível nela. Passou a chutar tudo e então colocou um disco de vinil no três-em-um da salinha com uma música sertaneja horrível em alto volume. Simplesmente não pude pregar o olho a noite toda, e nem me atrevi a falar nada com medo de levar um soco e ter meu rosto amassado como a parede.
Eu soube depois que a namorada do Natanael o havia deixado.
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