Acabei
de terminar com a minha namorada. Estávamos juntos há muito tempo e no começo
era maravilhoso, mas ultimamente mais brigávamos do que qualquer outra coisa.
Na
verdade ela terminou comigo, mas eu já esperava – ansiava – por isso. Então agora
estou só. Acabei a faculdade há cerca de um ano e só passei por empregos
pífios, e no momento estou desempregado... E só.
De
certa forma sinto o gosto de liberdade. Difícil é ficar pedindo dinheiro para
os meus pais para comer ou pagar o aluguel daquela quitinete horrível onde
moro.
Agora
caminho pelas ruas sem saber ao certo o que fazer. No momento não tenho vontade
de procurar emprego ou continuar a estudar fazendo uma pós-graduação ou algo
assim. Na verdade estou sem vontade nenhuma.
Paro
diante de uma vitrine. Uma livraria. Observo meu reflexo no vidro, um rapaz com
ar de cansaço, de derrota.
Entro
na livraria e vou olhando as estantes sem nada específico em mente. Percebo um
livro de capa chamativa, todo cor-de-rosa choque. Chamativo mesmo. Pego e o
título, em negro, me intriga: “O Livro”. Mais nada. Nem autor ou editora na
capa.
Abro-o
a esmo, em qualquer página. Leio. “Lá estava Lilian, nua, sobre sua moto incrivelmente
potente, fugindo dos carros da Gang do Armageddon. Ela sabia que se eles a
pegassem, seria estuprada e morta barbaramente. Estava nua porque eles a
encurralaram nos escombros do metrô, onde vivia após o apocalipse, e arrancaram
violentamente suas roupas, mas ela soube fugir, roubar a moto e pegar aquela
estrada.”
Uau,
pensei. Dirijo-me ao caixa. Estranhamente aquele livro não estava no
computador. O atendente, mesmo intrigado, cobra-me o preço escrito a lápis na
contracapa e deixo a livraria. Procuro um canto livre na calçada ampla da
Avenida Paulista, está uma manhã linda, e sento-me. Abro o livro na primeira
página e... Meu nome está escrito por toda ela. Surpreso, ergo os olhos do
livro e... A cidade... Está em ruínas. Não existem mais pessoas. O céu, antes
azul, está coberto de nuvens negras.
-
Se ficar aí sentado vão te matar.
Pisco
uma, duas vezes. Uma mulher linda, morena, olhos castanhos que penetravam a
alma, apenas sorria para mim. Estava seminua.
-
O que está fazendo aqui?
-
E-eu? Eu estava... Eu comprei esse livro e sentei-me para ler e de repente... O
que está acontecendo? De repente os prédios ficaram em ruínas e as pessoas que
estavam passando sumiram... Os carros...
-
Venha. Não pode ficar aqui. A Gang do Armageddon domina a área. Consegui achar
um lugar seguro em uma estação antiga do metrô, pode ficar comigo lá até seguir
seu caminho... Ou cumprir seu destino.
-
Quem é você? Como sabe que pode confiar em mim?
-
Meu nome é Lilian. Eu sonhei com você. Na verdade, esta noite, eu sonhei que um
rapaz como você, com um livro igual a esse que segura, iria aparecer e por
algum motivo iria me ajudar... Vamos. Não podemos ficar mais neste lugar.
Eu
sigo a morena, confuso. São Paulo agora é só ruínas. As avenidas estão com
carros queimados e esburacadas e os prédios todos destruídos. Não vejo ninguém
exceto aquela mulher estonteante.
Descemos
as escadarias sujas. A estação Brigadeiro do metrô está depredada. Lilian me
puxa para uma porta de alumínio e entramos em um corredor de concreto estreito.
Logo estamos onde ela vive. Ela me encara.
-
De onde você é? Como veio parar aqui, amigo? E o seu nome? E o livro...
-
Calma, Lilian, uma pergunta de cada vez. Meu nome é Eric e sou do interior. Eu
vou repetir, comprei esse livro, e quando o abri eu vim parar aqui... E eu sei
que não estou sonhando, porque isto é real demais...
-
Infelizmente não está mesmo; e depois das coisas que vi não duvido de mais
nada, Eric. A guerra foi cruel com o mundo, o que todos temíamos aconteceu...
Sobraram poucos de nós, sem lei, sem governo... Agora nós só dependemos de nós
mesmos. Eu sonhei com esse livro em suas mãos, o que não me surpreende. Eu
tenho o dom de sonhar com coisas que irão acontecer. Deixe-me vê-lo.
Entrego
o livro de capa chamativa e ela o abre. Suspira.
-
Aqui... – Ela fala com a voz embargada e lágrimas rolam de seus olhos. – Aqui
diz que vou morrer hoje. Estuprada e barbaramente morta pela Gang do
Armageddon. Eles vão me amarrar em um dos carros deles e sair acelerando e
serei esfolada viva no asfalto...
-
Como... – estou perplexo. Totalmente perplexo. – Como um livro pode descrever o
que vai acontecer com você... Aliás, como eu vim parar aqui afinal? O que está
havendo? Pode me explica, Lilian? – Ela é linda aos meus olhos, e seu corpo é
escultural, maravilhoso. Seu olhar e sua voz me assassinam.
-
As explosões nucleares pela Terra toda afetaram o espaço-tempo, Eric. Como eu
sei disso? Desde criança tenho o dom de prever as coisas e saber algumas respostas...
-
Então... Então deve saber como sair dessa encrenca, de como fugir dessa...
Dessa gang. Eu li que você iria fugir deles em uma moto veloz.
-
Sim... Posso roubar a moto de um deles. Mas veja você mesmo, eles conseguem me
derrubar... E depois eles se servem de mim... E acabam comigo do jeito que lhe
descrevi. Está aqui, neste seu livro.
Pego-o
novamente em minhas mãos. As primeiras páginas mostram o meu nome ad infinitum. Mas o que ela diz é
verdade, está no meio do livro. E então vejo que as páginas finais estão em
branco.
-
Mas... Lilian, me explica, o que é este livro?
Ela
limpa as lágrimas com as costas da mão e se refaz. Suspira. Olha-me com ar de
medo.
-
Isso eu não sei, Eric. Não sei todas as respostas. Mas eu sei que só você pode
me salvar.
-
Como? Eu sou só um sujeito assustado e muito confuso. E de quantos caras essa
gang é composta?
-
Trinta... Armados até os dentes... Homens enormes e muito, muito maus.
-
E o que eu posso fazer sozinho e desarmado contra um exército assim?
-
Eu não sei, Eric, eu não sei... – Ela me
abraça e volta a chorar mais forte, e sinto o seu medo. E o que eu posso fazer?
Eu? Contra uma gang?
A
porta de alumínio é derrubada. Ouvimos passos vigorosos. Gritos.
Puxo-a
para o outro lado do corredor estreito e encontramos uma escada de metal
chumbada na parede, e ajudo-a a subir. No nível da avenida, corremos e entramos
em um edifício aos pedaços.
Subindo
as escadas, chegamos a um apartamento depredado. Conseguimos fechar a porta e
com os móveis danificados o bloqueamos. Ela me abraça em seguida e nos
entreolhamos. Trocamos um beijo lânguido.
Eu
a admiro. Ela é linda. Ela me olha de forma elétrica. Eu nunca pensei que fosse
possível encontrar alguém que combinasse tanto comigo, que fosse exatamente o
meu número. Parece até que nós nos conhecíamos há muito, muito tempo. Coisa de
alma gêmea ou então reencarnação de antigos amores. Eu a conheci há poucos
minutos e já estava completamente apaixonado por ela. E ela por mim.
Eu
não resisto. Tiro-lhe as poucas roupas. Ela as minhas. Não chora mais, e sim
sorri para mim. Encontramos uma cama. Deito-a e sobre ela eu a beijo, tomo-lhe
os seios, a barriga lisa, seu sexo... Eu a possuo com vigor, faço-a esquecer de
tudo e chegamos ao clímax juntos... Ficamos abraçados ofegantes e voltamos a
nos beijar longamente.
Descubro
um chuveiro que ainda tem água, embora fria. Tomamos um banho juntos, rindo.
Depois nos vestimos. Espiamos a avenida. Ninguém.
-
Esqueci a porra do livro no seu esconderijo, Lilian! Vou lá pegar, fica aqui.
-
Não, vamos juntos. Não quero mais ficar sozinha. Nunca mais.
Ela
está determinada e acabo cedendo. Descemos e voltamos à estação do metrô. Ninguém. Sorrateiros, chegamos ao esconderijo
dela. Acho o livro. Ela pega algumas roupas. Decido que o melhor era se
esconder em algum dos edifícios em ruínas da Avenida Paulista por enquanto.
Porém
é tarde. Dois homens enormes estavam à espreita, esperando nosso retorno. Um
deles me soca e apago.
Tudo
escuro. Tudo dor.
Abro
os olhos devagar. Sinto meu rosto inchado. Sinto muita dor. Lilian não está mais lá.
Vejo
o livro de capa cor-de-rosa no chão e o pego. Grito por Lilian. Nenhuma
resposta.
Saio
cambaleante em direção a avenida a tempo de vê-la, nua, acelerando uma moto e
vários carros cheios de homens grandes e feios indo atrás dela.
-
Lilian!
Caio
de joelhos. Como poderei salvá-la? O destino dela estava escrito bizarramente
naquele maldito livro. Eu o abro de novo. Meus lábios tremem. Meu corpo
formiga. Minha boca fica seca.
-
Ah, Lilian... O que eu faço? – Lágrimas brotam de meus olhos.
Abro
o livro na página que descreve seu suplício. Com raiva, eu a arranco e a
amasso. Olho para trás e vejo três daqueles homens enormes com pés-de-cabra e nunchakus aproximando-se. Raivosos. Olho
para frente e outros três, armados e com rostos sádicos, vinham em minha
direção. Ameaço correr para a entrada do metrô pouco adiante, porém mais dois
emergem de lá. Eu ia ser trucidado.
Ainda
ajoelhado começo a rezar. Abro o livro e encontro, estarrecido, descrito
naquelas páginas amaldiçoadas, o meu futuro espancamento até a morte.
Arranco
a página com raiva, tremendo, e a amasso. E os homens somem. Desaparecem.
Evaporam como se nunca tivessem existido.
Ainda
incrédulo, fico tonto. Atordoado. Baixo os olhos para o livro. O livro. Esse
era o segredo. Vasculho os bolsos e encontro uma caneta. Coloco o livro nas páginas
em branco, e, passando a língua por meus lábios ressecados, escrevo que Lilian
retorna sã e salva.
E
minutos depois ela para a moto ao meu lado. Nua. Maravilhosa. Arfando mas
sorrindo. E ouvimos os carros da gang aproximando-se de nós em alta velocidade.
Volto a escrever no livro e descrevo uma batida monstruosa entre eles, longe de
nós, explodindo e matando todos.
E
acontece. Uma labareda imensa sob aos céus nublados. Lilian encara-me
completamente surpresa.
Suspiro.
Sorrio para ela. Volto a escrever no livro.
Escrevo:
O apocalipse nunca
aconteceu na verdade. As armas disparadas desapareceram, a vontade de combater
se esvaneceu de todos os corações. Tudo fora um equívoco. Eric e Lilian se
conheceram pouco após se formarem na faculdade e ambos têm excelentes empregos
atualmente. Vivem juntos e se amam. E terão um futuro brilhante pela frente.
Em
um piscar de nossos olhos a Avenida Paulista voltou a ser o que era.
Movimentada, cheia de pessoas e carros. Olho para Lilian e ela larga a moto. Nos
abraçamos e nos beijamos ali, em plena manhã em São Paulo.
Eu
só me esqueci de descrever uma roupa para ela.
Vitor
Hugo B. Ribeiro